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Vila Nova de Famalicão
Sábado, 20 Abril 2024
Marta Duque Vaz
Natural de Famalicão e radicada no Porto, licenciada em antropologia e pós-graduada em economia social, é jornalista e autora de “A Senhora Clap”, livro do Plano Nacional de Leitura, que foi adaptado a uma peça de teatro no Brasil.

As cartas do Senhor Mário

As cartas de uma vida. Alegres ou tristes, não importa. O carteiro trazia-as até mim.

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Marta Duque Vaz
Natural de Famalicão e radicada no Porto, licenciada em antropologia e pós-graduada em economia social, é jornalista e autora de “A Senhora Clap”, livro do Plano Nacional de Leitura, que foi adaptado a uma peça de teatro no Brasil.

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Naquele tempo o meu coração estava disfarçado de campainha, no guiador da bicicleta do Senhor Mário. Assim tipo uma anémona, fora do seu habitat natural. Só que era o meu coração camuflado ali, à mão do carteiro.

Para alcançar a minha casa, descia da bicicleta e enfrentava o aclive fazendo-a deslizar nos paralelos de granito, sem o esforço de pedalar por ali acima. No Verão, sob o sol do meio-dia – era mais ou menos a hora a que chegava – custava mais, ainda, e, com delicadeza genuína, dizia: bom dia, menina; posso-lhe pedir um copo de água, por favor?

Encostava a bicicleta ao muro, um pouco antes do portão, tirava o lenço do bolso, um lenço azul suave e passava-o na testa como se fosse um limpa pára-brisas. Eu chegava com a água, um copo sem par, transparente e alto, e o Senhor Mário bebia num ápice, ganhando novo folêgo para dar continuidade à subida, até entrar noutra freguesia – Brufe – num trecho de caminho plano ao encontro de outras pessoas e de outras casas.

Depois, agradecia sinceramente, ajeitava o boné inteiriçado, sorria e tirava as cartas de um dos sacos de couro puídos, apoiados na traseira da bicicleta. Voltava a sorrir e, às vezes, colocava as cartas em leque, como se fossem cartas de jogar, e tirava a minha com satisfação, como se me entregasse o Ás do baralho. E eu, ali num anseio feliz, como se ele fosse o escritor da minha carta; ou como se ele fosse o homem mais bondoso do mundo, guardião de palavras sem fim. Alegres ou tristes, não importa. Trazia-as até mim.

O Senhor Mário, carteiro, não era de muitas palavras. Quer dizer, usava-as com parcimónia. Talvez por as carregar todos os dias, aos milhares. Pensava eu. Era mais de sorrisos. Sorrisos assim, como os selos das cartas. Diferentes. Todos diferentes. Nele, só a farda era sempre a mesma. Como a camisa, sempre azul que vestia e o seu lenço limpa para-brisas, azul mais claro. E o boné cinzento que acondicionava na cabeça. Sempre do mesmo modo. Um tanto rígido, como a sua postura.

Só o seu sorriso parecia um fio maleável, tomando formas que denunciavam a sua alma ginasta. O seu corpo não acompanhava essa fluidez anímica. Pelo contrário. E esse desencontro entre corpo e alma, não sei porquê, impressionava-me. De tal forma que o apelidei de carteiro dissonante. Alto, magro, moreno e dissonante. Tímido e bondoso.

Durante anos a fio fui-lhe desvendando o ser. Dei por ele, claro, quando comecei a receber cartas. Antes disso, era apenas o carteiro que a campainha da sua bicicleta denunciava do outro lado do muro do quintal. Quando passou a trazer cartas dirigidas a mim, com o meu nome, a tinta preta ou azul, no envelope, a sua existência ganhou forma e volume e até a sua alma e os seus estados anímicos passaram a interessar-me e a ser motivo das minhas reflexões pueris.

A primeira vez que vi O Carteiro de Pablo Neruda, também me emocionei por me recordar do Senhor Mário. E da pena que senti, por nunca ter sabido o apelido do carteiro da minha vida. Jiménez, não era de certeza. Talvez Silva, Ferreira, Sousa. Nunca soube.

Senhor Mário Carteiro Dissonante Quase Silencioso era e ainda é o seu nome completo. E o trrim, trrim, trrim da campainha da sua bicicleta, é, talvez, a onomatopeia da minha vida. Desde sempre que as cartas – todas as cartas – me seduzem. Quando comecei a recebe-las, dirigidas a mim, percebi o porquê. Era o mundo feito abecedário. Muito nosso.

Comecei por receber as cartas da madrinha. Cartas e postais. Eram envelopes de ternura. Letras miúdas, muito juntas, sempre cheias de saudade. Foi a madrinha que me ensinou a rezar. E a gostar de pão branco. Como ela. Pedia sempre para me portar bem, para obedecer aos papás. Para não me esquecer do meu anjo da guarda e para lhe enviar desenhos. Ela acreditava que as minhas montanhas azuis existiam. E que as baleias também podiam viver nos rios.

Depois, mais tarde, eram as cartas e os postais das amigas, durante as férias. Cheias de aventuras e confissões. Repletas de tempo e, tantas vezes, numa fúria contra o tempo por nunca mais nos trazerem os dezoito anos. Como se viver dependesse deles. Daí, às cartas de amor, rídiculas, como convém, não faltou muito.

Um dia, depois de sorrir, o Senhor Mário disse: o rapaz é poeta, gosta de escrever. E é de longe! Ah, pois é!

E eu corei e virei-lhe as costas, para ele não dar conta, mais rápida do que nunca, na corrida para o lago. Gostava de ler as cartas com os peixes vermelhos por perto. No silêncio perfumado do quintal, encostada à tangerineira. Ou então, no terraço, onde a linha do comboio fazia de horizonte. Um dia, o Senhor Mário entregou-me uma carta precedida de um: diga que sinto muito, menina. E não sorriu. Como de costume. Foi nesse dia que percebi que as cartas também nos deixavam tristes, profundamente tristes, principalmente quando a tristeza era anunciada numa lista preta, no canto superior do envelope. E toda a gente ficava a saber da nossa tristeza, como se a carta fosse um funeral.

Outras vezes, a minha mãe recebia cartas que já tinham andado de avião, antes de viajarem na bicicleta do Senhor Mário. Eram azuis, um azul água, bordado a vermelho a toda a volta. Faziam-me pensar, essas cartas que atravessavam nuvens para chegar.

Uma vez, o carteiro entregou-me um telegrama. Muito leve. Devia ser das poucas palavras. E então, fiquei certa de que não é preciso muito para a felicidade ser imensa.

Era assim no tempo em que o Senhor Mário, sem saber, andava com o meu coração disfarçado de campainha, no guiador da sua bicicleta. Com milhares de palavras no saco de couro. Cartas com mil histórias dentro. Cartas vividas, que ele vivia.

É o que me ocorre, agora, quando vou à caixa do correio, sem correr. Está atafulhada de publicidade, cartas do banco, da água, da luz, de massivos folhetos promocionais.

Às vezes, de longe a longe, chega uma carta para mim. De quem sabe que as gosto de ler. A contar-me a vida a tinta preta ou azul. Conforme. Sorrio sempre. Imagino que corro para o lago, onde vivem, ainda, os meus peixes vermelhos. Para a ler no silêncio perfumado que me habita a memória. Mas não sei o nome do carteiro. Um homem veloz, de colete CTT. Estaciona o carro minúsculo, entrega a correspondência. Sem o sorriso cumplice e bondoso com que o Senhor Mário selava as cartas. As cartas de uma vida.

Há dias, já longos, chegou uma da Maria Eugénia e eu numa alegria desconcertante. Esta crónica bem pode ser a carta que ainda não lhe escrevi.

(A autora escreve na antiga ortografia)

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Marta Duque Vaz
Natural de Famalicão e radicada no Porto, licenciada em antropologia e pós-graduada em economia social, é jornalista e autora de “A Senhora Clap”, livro do Plano Nacional de Leitura, que foi adaptado a uma peça de teatro no Brasil.
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