Num mês em que o orgulho é a palavra-chave, falar de António Variações é inevitável. Com looks sempre arrojados e uma voz de fazer inveja ao ser humano comum, António era uma mistura da simplicidade das aldeias do Norte com uma Lisboa pós-revolução que pretendia reerguer-se de uma governação fascista que durava há 41 anos. Se Portugal era um país a preto e branco, a irreverência do cantor natural de Amares era a cor que precisávamos para nos soltarmos das amarras da ditadura em direção ao progresso económico, social e cultural.
Nascido em 1944, viveu durante três décadas sob o regime repressivo do Estado Novo, exercendo diversos trabalhos e servindo também o exército português. Aquando da sua mudança para Amsterdão, nasce o ícone musical que hoje tão bem conhecemos. António pôde finalmente ser Variações, disfrutando de uma liberdade política e sexual que era ainda embrionária em Portugal, após a Revolução de 1974. Os clubes que lá frequentava e que o permitiram crescer como artista e como ícone queer, eram ainda um anátema numa nação que esperou até 1982 para que a atividade homossexual fosse legalizada.
Quando regressou a Portugal em 1976, tornou-se no rosto do progressismo nos bairros de Lisboa, onde uma cultura adormecida começou a florescer, com encontros de novas gerações de músicos, jornalistas e arquitetos, que pretendiam emergir após uma censura implacável os ter mantido clandestinos.
António era uma exibição gratuita e fascinante, que carregava consigo um sentido de moda ainda estranho à nossa capital. Por baixo da sua barba de duas toneladas, podia vestir calças apertadas com chinelos de quarto com a mesma leveza com que misturava botas de couro com camisolas de malha. Era o espelho da mudança e da revolta de um país outrora sem voz, que Variações não queria que se mantivesse no silêncio.
Fez a sua estreia em televisão em 1981 na única emissora que existia em Portugal, e a partir daí nunca mais nada foi igual. Nunca nada tão transgressivo tinha alguma vez agraciado as ondas aéreas portuguesas, contrariando o profundo conservadorismo que reinava no país. O seu LP mais vendido em 1983, Anjo da Guarda, colocou as suas influências de fado num novo cenário, enquanto o álbum seguinte equilibrava o disco-rock com o synthpop melancólico. Através da sua caneta reconciliou a sabedoria popular e a identidade queer, e canções como O Corpo É Que Paga e É P’ra Amanhã, reinventaram provérbios que contavam lições de vida. Em 1984, o luto nacional pela morte de Variações foi dominado pelo escrutínio da SIDA, que ainda era muito pouco conhecida no nosso país. Foi difícil mantê-lo vivo nos ouvidos dos portugueses quando o estigma em relação à doença falou mais alto que a obra que deixou para trás.
A sua reapreciação começou quando variados artistas decidiram homenageá-lo de diversas formas, e culminou num filme biográfico estreado em 2019, que se tornou num dos filmes portugueses mais vistos em Portugal de todos os tempos, e fez com que Variações voltasse a dominar a consciência pública, nem que fosse só por uns meses.
Um hedonista amado pelo povo, um humilde por detrás de uma postura confiante, um artista que pintou com as cores do arco-íris um país outrora sem cor. Das casas de banho de Lisboa para o mundo, Variações, que um dia fora apenas António, tornou-se assim num dos maiores ícones da música portuguesa e dos maiores símbolos da luta da comunidade LGBTQIA+.
Não só no mês de junho, como em todos os meses do ano, é importante que a sua inquietação e constante vontade de mudança continuem a ecoar numa sociedade, que embora não tão cinzenta como dantes, ainda necessita de ser pintada com muita cor.
“E assim saí daí
de olhar para trás
pensamento em frente.”
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