Ser filha de surdos. A minha vida foi desenhada ali, naquele momento em que nasci, não tenho dúvidas, e sou tão grata por isso.
Aprendi a língua gestual portuguesa desde sempre e de forma natural, em simultâneo com a língua portuguesa. Por isso, fiz sempre parte de dois mundos, o ouvinte e o surdo, entendendo-os, criando pontes entre eles e por esse motivo me tornei intérprete de língua gestual portuguesa.
Os primeiros intérpretes de língua gestual foram precisamente filhos de pais surdos, amigos ou familiares que sempre fizeram esse papel de intermediar a comunicação entre surdos e ouvintes.
Na comunidade surda, os filhos de surdos são designados por CODA (Children of Deaf Adults). Os CODA podem ser surdos ou ouvintes. Nem todos os CODA têm um percurso profissional relacionado com os surdos ou com a língua gestual, mas todos os CODA adquirem desde cedo a língua gestual, de forma natural, em contexto informal e por isso são bilingues.
Nós, os CODA, temos experiências de vida únicas e mesmo entre nós experiências diferentes, que na minha opinião dependem de vários aspetos como: a nossa idade e idade dos nossos pais, capacidade de oralizar por parte dos pais surdos, tipo de surdez, compreensão do português escrito, se somos filhos únicos, entre outros. O filme La Famille Bélier retrata as vivências de uma CODA, e em muitos aspetos eu revi-me. Vejam, pois vão perceber melhor esta realidade.
Acho que posso dizer que vivi a surdez dos meus pais naturalmente, sempre agi como “tradutora” deles de forma espontânea, porque surgiam recorrentemente dificuldades de comunicação em diferentes contextos.
Já contei algumas vezes que acho que só percebi que o facto de os meus pais serem surdos era algo diferente quando entrei para a escola, e os meus pais não conseguiam sozinhos ter o papel de encarregados de educação, tal como os outros pais. Precisavam sempre da minha avó ou de uma vizinha para estabelecer a comunicação com professores e funcionários.
Felizmente, a sociedade tem-se mostrado cada vez mais sensibilizada para esta temática, para a importância de garantir a acessibilidade às pessoas surdas, o que é ótimo e que também descansa o coração dos filhos de pais surdos. Mas ainda falta tanto… ainda há tanta coisa que não me deixa dormir.
E como tudo na vida, esta experiência de vida pessoal, tem coisas boas e coisas menos boas. Tenho muito, muito orgulho de ter estes pais, de ter a língua gestual portuguesa como primeira língua, de ter uma relação com os meus pais como poucos têm, de ter crescido numa casa com muito amor. Como menos bom, considero que tenha sido o sentido de responsabilidade que adquiri desde cedo, presenciar algumas atitudes e situações discriminatórias e sofrer com isso, e saber que a barreira comunicativa continua a existir.
Estava longe de imaginar, que o meu primeiro texto para a crónica mensal “Entre Gestos”, fosse coincidir com a fase mais difícil da minha vida como filha… uma fase que me fez perceber que me falta a coragem, que tenho medos, que tenho mil preocupações e responsabilidades, que fez com que eu tivesse a certeza de onde é o meu lugar.
A palavra cancro assusta. E onde estava o controlo emocional que devo ter enquanto intérprete quando a informação que o meu pai tem um cancro, teve de passar por mim para chegar a ele? Não estava, porque sou filha e nenhum filho está preparado para isto.
Apesar de ser uma situação muito difícil, agradeço o facto de poder ser a intérprete e a filha dele, porque me permite estar presente e apoiar. E porque, mesmo que seja muito difícil, não há ninguém no mundo a quem confie esta tarefa.
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