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Quinta-feira, 28 Março 2024
Laurisa Farias
Jornalista brasileira a viver em Coimbra, Laurisa gosta de ouvir e contar estórias. Escreve no dia 6 de cada mês.

Mercado Dom Pedro V é um lugar, não um local

Quando um espaço ganha significados humanos, a partir das experiências das pessoas, torna-se lugar, e “e é aí que mora o coração da geografia humanista”.

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Laurisa Farias
Jornalista brasileira a viver em Coimbra, Laurisa gosta de ouvir e contar estórias. Escreve no dia 6 de cada mês.

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Quando chego em uma cidade, ao contrário de um bom número de pessoas, não quero saber qual o centro comercial mais próximo. Centros comerciais são os mesmos em qualquer ponto do mundo: Coimbra, Manchester, Recife, Buenos Aires…. Como aeroportos, lojas de fast food e alojamentos das grandes e populares de cadeias de hotéis, são o que o antropólogo francês Marc Augé classifica de não-lugares, acrescentando que a solidão permeia todos os aspectos dos não-lugares.

Isso porque os não-lugares carecem de significados culturais e são homogeneizados em todos os seus aspectos. É o oposto do que estabelece a Geografia Humana, que, a partir dos anos 70, passou a conceitualizar lugar como uma localização que adquiriu um conjunto de significados e valores agregados.  Lugares são localizações com significado, segundo o geógrafo inglês Tim Cresswell. Quando um espaço ganha significados humanos, a partir das experiências das pessoas, ele torna-se lugar.

Localização é o ‘onde’ de um lugar, um ponto físico com um conjunto de coordenadas geográficas. Local é um cenário material onde relações sociais acontecem – como prédios, ruas, parques. Mas acima de tudo emanam um “senso de lugar”, com os aspectos visíveis e tangíveis de um lugar: sentimentos e emoções que um lugar evoca, quer baseados nas histórias de cada de um de nós ou em um conjunto de significados produzidos pelo cinema, literatura, publicidade.

Todo este raciocínio acadêmico sustenta minha atração e fascínio por mercados. Sim, faço parte de um universo que tem uma imagem romântica – ingênua até – daqueles espaços em que pessoas os recheiam com cores, sons e cheiros os mais diversos. Do peixe ao pão assado no forno ao queijo de cabra. Dos tons de vermelho do tomate e do sangue nas luvas de metal que cortam porcos e cabras ao verde do brócolis e do talo das flores passando pelo preto das vestimentas das senhoras grisalhas que lá estão a (re)vender seus produtos. O que é o caso dos mercados municipais.

O Mercado Dom Pedro V, que conheci no verão de 2017, logo que cheguei à Coimbra, foi reinaugurado em novembro de 2001, depois de passar por reformas. Antes desta reforma do início do século 21, o mercado passou por muitas outras remodelações ao longo de seus 150 anos.

Carlos Santarém Andrade escreveu uma série, intitulada Mercado D. Pedro V – Uma História com História, composta de três artigos, que foi publicada em suplemento especial no Jornal de Coimbra em novembro de 2001 e estão disponíveis no website A Cerca de Coimbra.

Andrade conta-nos que na primeira metade do século 19, Coimbra tinha três mercados: o mais antigo era na Praça de S. Bartolomeu (hoje Praça do Comércio); o segundo era o Sansão, em frente ao Mosteiro e da Igreja de Santa Cruz, e ainda um mercado semanal (às terças-feiras) no antigo Largo da Feira, em frente à Sé Nova, “reminiscência da chamada Feira dos Estudantes, instituída no século XVI por D. João III, para a comunidade da Universidade, depois da transferência definitiva para a cidade”.

Em 17 de novembro de 1867 foi inaugurado o então novo mercado da cidade e as primeiras restaurações aconteceram em 1872 e reparações continuariam a ser feitas até o final do século 19. Em 1907, foi construído um novo espaço para a venda de peixe.  Uma grande reforma estrutural teve início em agosto de 1928:

“As obras (…) são mais importantes do que se supõe (…) Desaparecerão todas as tendas, barracas e alpendres que ali há. Será feita uma marquise sobre o mercado e outra sobre o recinto reservado à fruta e hortaliça na encosta da barreira, fazendo uma entrada para o mercado pelo lado do Colégio Novo”.

Já em dezembro começam a funcionar “as barracas para venda de carneiro, miudezas, etc.” e no ano seguinte, 1929, é instalado um portão de ferro, uma nova cobertura do pavilhão do peixe e a abertura de mais um pavilhão. “O certo é que o velho mercado a tudo ia resistindo, com a merecida fama de ser uma praça farta, com produtos cuja excelência era comummente reconhecida, desde as frutas e legumes dos férteis campos do Mondego, ao peixe que diariamente aí chegava vindo da Figueira da Foz”.

Mais de 50 anos depois, em 1982, começaram a surgir pedidos para que a Câmara Municipal atentasse “muito seriamente na transformação, remodelação ou melhor localização do Mercado D. Pedro V, cuja degradação se vem a verificar desde há anos”. Mas foi somente no primeiro ano do novo milênio que iniciaram as obras de reforma do prédio:

“Em outubro de 2000, fecharam-se pela última vez as portas do mais que centenário mercado. (…) o novo mercado transformou o espaço num funcional e moderno local de comércio, num enquadramento que valoriza a área e os edifícios circundantes, atrativo e de acordo com as atuais exigências, pronto a receber de novo os vendedores e o ruidoso e colorido formigueiro humano tão característico, ontem como hoje, do Mercado D. Pedro V”.

Andrade ressalta que houve um episódio que não pode poder ser dissociado da história do Mercado Dom Pedro V: a Revolta do Grelo.

Em março de 1903, as vendedeiras do mercado revoltaram-se contra o Imposto do Selo. Não era uma nova taxa, mas uma nova forma de cobrança. O descontentamento das mulheres terminou por se estender a outros segmentos da população de Coimbra, como operários e empregados de comércio, passando por caixeiros, camponeses e até mesmo envolvendo uma parte da Academia. Choques com as forças da ordem resultaram em dois mortos e numerosos feridos. Neste clima de revolta ouviram-se gritos de “Viva a República” e “Revolução Social”.

Em seu livro a Revolta do Grelo, o professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Vasco Pulido Valente explica que a imprensa de Lisboa passou a designar o movimento de protesto de Coimbra contra a cobrança de mais imposto de forma pejorativa e para tentar minimizar sua repercussão.

Para entender melhor a diferença entre local e lugar, de acordo com Cresswell, vamos a exemplos práticos.

De acordo com o site da Câmara Municipal de Coimbra:

“O Mercado apresenta-se como uma mostra privilegiada dos pequenos produtores da região de Coimbra, com cerca de 470 produtores inscritos, disponibilizando 190 lugares de venda, divididos por 3 pisos. Aqui são vendidos produtos das mais diversas áreas – talho e charcutaria; pão e pastelaria; pescado (fresco e congelado), frutas e produtos hortícolas; flores; vestuário e retrosaria e produtos diversos. No Mercado D. Pedro V encontra ainda lojas de comércio e espaços de restauração. Encontra-se atualmente em curso o projeto de refuncionalização do Mercado D. Pedro V, inserido no âmbito do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano (PEDU) da Câmara Municipal de Coimbra”.

Esta descrição emociona? A mim também certamente que não. Ou seja, o Mercado Dom Pedro V é um local onde compram-se carnes, flores, aves, tomates, peixes, queijos, pães, laranjas, e também camisolas, meias, linhas, cuecas, aventais, sacos, em ao longo de seus três pisos que são interligados também por uma escada rolante na ala oeste.

Não há narrativas. Não se diz que a maioria das vendedoras são mulheres, muitas bem além da meia-idade, vestidas, boa parte delas, de preto. Seriam viúvas? Ou apenas uma cor que esconde as manchas que o manuseio dos produtos que vendem que são frutos da terra?

Exatamente o oposto de lugar, como bem mostra Andrade em seu blog. Em locais não cabem pessoas. Em lugares, as pessoas são as narradoras do local, da história pessoal que as conecta ao local.

Como uma senhora (cujo nome declino de mencionar em respeito à privacidade dela) que está há mais de 30 anos à frente do talho que seus pais estabeleceram mais de 50 anos atrás, quando seu pai comprava os animais, levava-os para o matadouro e posteriormente para o mercado, onde sua mãe já se encontrava. Hoje a senhora já não percorre toda a cadeia produtiva: ela compra diretamente de fornecedores, que vão ao mercado diariamente. Suas duas filhas ajudam aos sábados, dia de maior movimento. Ela não sabe se a tradição familiar terá continuidade. “Eu ficaria contente se elas continuassem, mas elas que sabem”, diz com um sorriso aberto que deixa claro sobre o que deseja para o futuro.

Uma de suas filhas é auxiliar educativa e começou a ir à loja para fazer apenas limpeza, há mais de cinco anos. Pela habilidade com que hoje maneja facas e cutelos percebe-se que, mais do que um simples negócio rentável, ela verdadeiramente tem prazer e satisfação em exercer o ofício que lhe foi ensinado por sua mãe. A depender do mercado de trabalho, ela dará continuidade ao negócio iniciado por seus avós maternos.

História bem diferente de outra senhora que vende peixes há 20 anos, quando da última reforma do Mercado. Não por tradição de família. As criaturas do mar são apenas mais um produto entre tantos outros que ela tem vendido ao longo de sua vida, como pães e verduras, há 40 anos. Quando ela reformar, o espaço que ocupa será simplesmente alugado para e por outro retalhista.

A riqueza de um lugar fica ainda mais acentuada inclusive pela diversidade das narrativas. Como é o caso de como ambas as senhoras vêem o próprio Mercado Dom Pedro V. Para uma, é um lugar imbricado com sua história familiar, para a outra simplesmente um local para se vender algo.

Para a senhora do talho, o Mercado está pujante e está satisfeita que aumentou o movimento nos últimos quatro anos, com a chegada de um novo perfil de consumidor: “Jovens de até 40 anos que vêm aos sábados porque o mercado fecha cedo na semana”.  Já para a outra, “está sempre pior, a cada dia, porque deixaram as grandes superfícies dar cabo disso aqui. Mais ano menos ano, isso aqui vai fechar”.

Os universos particulares destas mulheres contêm suas próprias essências, pois refletem seus lugares internos. Aqui não há homogeneização de valores, muito menos de percepções e sensações. Para o pesquisador inglês, os significados dos lugares para as pessoas estão diretamente relacionados ao que elas fazem, e quanto mais mundanas são as atividades, maior significação o lugar terá. Quando um espaço ganha significados humanos, a partir das experiências das pessoas, torna-se lugar, e “e é aí que mora o coração da geografia humanista”.

(A autora escreve em português do Brasil)

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