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Sempre gostei muito do trabalho voluntário. Para mim, é uma maneira de retribuir tantas coisas boas a pessoas generosas que o universo me presenteou colocando na minha vida.
Um dos trabalhos que mais me emocionou foi nos Jogos Paralímpicos Rio 2016. Para quem não é familiar com a palavra, paralímpicos referem-se aos jogos específicos para atletas com vários graus de deficiência e são realizados juntos com os jogos olímpicos, que acontecem de quatro em quatro anos.
Era a primeira vez que paratletas de todos os quadrantes do mundo teriam sua olimpíada em um país da América Latina. Apesar de na época morar em uma cidade que fica a quase três mil quilômetros distante do Rio de Janeiro, e eu teria que pagar hospedagem e transporte, eu queria fazer parte deste grande acontecimento para uma população que na melhor das hipóteses é invisível, e na pior, negligenciada. Eu sabia que aquela era uma oportunidade única e não podia perder. Fui. Foram os quinze dias mais espetaculares da minha vida.
Foi também uma oportunidade única que me fez ser voluntária outra vez em julho último: ajudar nas escavações do sítio arqueológico da vila romana de São Simão, do concelho de Penela, no distrito de Coimbra. Depois de meses confinada entre quatro paredes, em razão da pandemia, eu precisava realizar atividades ao ar livre, passar a maior parte possível do meu dia tendo apenas o céu como teto.
Os voluntários eram, em sua maioria, estudantes de Arqueologia, mas havia ainda alunos de Antropologia, História e até mesmo de Artes. Nosso alojamento era uma hospedaria no Rabaçal, famosa por seus queijos de cabra e de ovelha. A pousada, em tempos normais, é lugar de descanso dos peregrinos de Fátima e de Santiago de Compostela. Desta vez, no verão de 2020, tinha apenas nós, voluntários, como hóspedes.
A hospedaria fica ao lado do Museu da Vila Romana do Rabaçal, que é gratuito. Lá o visitante verá as peças colhidas no sítio arqueológico do Rabaçal, para onde depois será levado pelo guia. O sítio do Rabaçal faz parte do circuito Villa Sicó, uma inciativa que reúne os principais sítios arqueológicos romanos na região Centro de Portugal. Fazem parte ainda do circuito Conímbriga, certamente o mais famoso, Santiago da Guarda, Alcabideque, Soure e Alvaiázere.
Foi em Alvaiázere que descobri o chícharo, um grão comestível de sabor e textura únicos, de alto valor nutritivo, que parece uma mistura de grão de bico com tremoço. Mas a história do chícharo foi o que me encantou. No Museu Municipal de Alvaiázere, somos informados que o grão era considerado comida das gentes pobres, pois era originalmente usado apenas para alimentar o gado. Mas existe agora um movimento para que o grão faça parte do patrimônio alimentar de Portugal, incluindo a venda do chícharo em embalagens que evocam sua história.
De volta ao sítio arqueológico de São Simão, que hoje é ocupado pela Capela da Senhora da Graça. O local foi ocupado pelos romanos a partir do século II e até o século V. Foram também encontrados documentos, os mais antigos datando do século XIII, a dar conta de um eremitério (onde habita o ermitão) franciscano na povoação, que, acredita-se, seja onde hoje está a capela. Segundo Flávio Pinto, antropólogo responsável pelas escavações, “podemos afirmar que este espaço, agora dominado pela Capela da Senhora da Graça e o seu adro, foi terreno de várias culturas, vindo a acolher, de forma quase ininterrupta, atividade humana ao longo de pelo menos dois milénios”.
Uma carrinha da Câmara de Penela nos apanhava na pousada às 7h45. Às 8h já estávamos na vila romana de São Simão. Às 10h00 fazíamos um intervalo para recarregar as forças, ou seja, comer e comer bem. Devido ao calor abrasador, encerrávamos os trabalhos às 13h00. O almoço era na tasca do sr. Abílio, que apenas com sua mulher, a sra. Margarida, alimentavam a malta, boa parte dela de caminhoneiros. Eu era a única que deixava meu prato sem um único vestígio de que alguns minutos antes ele tinha sido colocado à minha frente com uma dose generosa da ementa do dia. Talvez por isso ele sempre me perguntava se eu queria um bocadinho mais. Geralmente eu aceitava e eis que ele me trazia outra dose bem servida, que eu saboreava igualmente com gosto.
A ementa da semana na tasca do sr. Abílio era fixo e a comida era sempre deliciosa, certamente uma das melhores que já comi em Portugal. Perguntei para o sr. Abílio se era possível fazer rancho, um dos meus pratos favoritos. Ele disse que não porque teria que ser feito fora, pois requer muito trabalho. Então perguntei sobre feijoada portuguesa. Na semana antes de eu terminar meu período de trabalho, ele concordou em fazer excepcionalmente uma bela feijoada portuguesa. Fiquei duplamente feliz: por saborear mais uma das riquezas da culinária portuguesa e especialmente pela atenção, carinho e acolhimento daquele casal que alimenta corpos e almas todos os dias de suas vidas.
O sítio arqueológico de São Simão onde trabalhamos contém uma construção habitacional com 19 pavimentos de mosaicos de cores vivas, que estilisticamente apontam para fases muito distintas de ocupação até inícios do século V. Estima-se ainda que o adro também foi ocupado como necrópole paroquial nos séculos XV e XVI. Assim, nossos instrumentos de trabalho eram balde, escovas, picaretas, espátulas, picos e carrinho de mão. Era um trabalho puramente braçal, árduo (especialmente por causa do calor), fisicamente desafiador. Essa dureza, no entanto, não era sentida em razão do significado do nosso trabalho. Não estávamos apenas a escavar o solo em posições que ficavam incômodas depois de certo tempo, a tirar pedras, a carregar baldes de terra. Estávamos a resgatar uma parte importante da história de Portugal.
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