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Vila Nova de Famalicão
Domingo, 4 Maio 2025
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.

Encontros e desencontros com “mon ami” Mário Soares

Agostinho Fernandes relata memórias da presidência da Câmara e conta como foram feitas as pazes com Mário Soares. O antigo líder socialista zangara-se com o edil famalicense por causa de outro Presidente, o militar Ramalho Eanes.

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Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.

Famalicão

Mário Soares nasceu em 1924, a dois anos do 28 de maio de 1926, na I República, e aturou até 1974 e por longos 48 anos o ditador de Santa Comba Dão.

Quase tudo o que se conseguiu para a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, nas décadas de 1980 e 1990, foi carreado em governos de Mário Soares, intervalados pela governança do homem de Boliqueime, apesar de haver também entre nós, amuos, zangas e momentos melhores que a governação exige reivindicar, exibir razões convincentes e, se necessário, litigar mesmo, fazer opções e fazer, fazer, fazer… Porque palavras leva-as o vento e, como diziam os mestres latinos, as palavras voam e as obras ficam.

Nunca me interessou a direita que provou à saciedade o que era durante a longa noite do fascismo na Europa, nem a URSS dos campos de reeducação na Sibéria e gulags à maneira de Soljenitsin, Navalny e tantos, tantos mais!… São iguais para mim, em jeito de velhas tribos predadoras de arco e flecha, mas oligarcas e cleptómanas, piores que animais de selva pura, um logro e um engano que só a democracia, com paz, diálogo e justiça social, constitui o maior bem e a causa existencial maior de cidadãos da grandeza de Mário Soares, Konrad Adenauer, Willy Brandt, Miterrand, Olof Palm ou Felipe González, os rostos do socialismo de rosto humano numa Europa em ruínas a par de Charles de Gaulle ou Wilson na velha Inglaterra.

UM RASPANETE EM S. BENTO

Estive com Soares dezenas de vezes, falamos de tudo e de nada, informalmente muitas vezes também, discutimos e fizemos amizade mas, logo em 1983, na homenagem a Bernardino Machado, irritou-se comigo e não veio cá, dando-me um raspanete nos jardins do Palácio de S. Bento, e ao lado de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, por eu ter convidado também o Presidente Eanes. O líder do PS, que liderou o Governo do Bloco Central, entre o PS e o PSD, entre 1983 e 1985, era um civilista e achava dispensável a presença de Eanes.

A Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, de que eu era presidente desde janeiro de 1983, assim não o entendeu, pois que o nosso Bernardino Machado tinha sido Presidente da República por duas vezes e repousava entre nós no cemitério municipal. Durante anos havia de não esquecer esse incidente político comigo, mas sem afrontamentos.

Visita oficial aos Paços do Concelho em 29 de junho de 1991

Mais tarde, e de visita ao seu túmulo, sugeria que o nosso Bernardino fosse para Lisboa e dizia, ”à semelhança de praticamente todos os outros Presidentes…”, ao que retorqui que não, não havia razões de peso e que ele repousava ali por sua vontade e ao nosso lado e de seus pais, com todos os seus familiares, e que eram muitos, pelo que nem negociável seria e só com decisão da Assembleia da República.

Percebi que Mário Soares compreendeu e respeitou e não voltou ao assunto. Doutro modo lá ia mais um dos nossos melhores/maiores para os Jerónimos ou para o Panteão como recentemente calhou ao “pobre homem da Povoa de Varzim”, Eça de Queiroz, que Baião subestimou…

UM ELOGIO ENTRE RECADOS

Durante o processo polémico de construção da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos urbanos (ETRSU) na Quinta do Mato, em Riba de Ave, no enclave dos concelhos de Famalicão, Guimarães e Santo Tirso, Soares veio até nós, já no cargo de Presidente da República, apaziguar os ânimos de todo o Vale do Ave e dar força à transformação necessária pela educação para o ambiente e contra as lixeiras a céu aberto. Ouviu-nos falar a todos perante a população e fez um “rendez-vous” no fim, em Guimarães.

Visita à exposição pública no átrio da Câmara Municipal do primeiro Plano Diretor Municipal de Vila Nova de Famalicão, aprovado pelo Governo de Cavaco Silva, em 1994.

Como homem corajoso que era, deu recados a todos nós, autarcas dos municípios do Vale do Ave interessados naquele projeto ambiental: Parcídio Summavielle (Fafe), António Magalhães (Guimarães), Joaquim Couto (Santo Tirso) e eu próprio, dizendo que “o Agostinho Fernandes era o único que sabia falar bem à alma do povo, seguido do Parcídio, apesar de seus tiques de aristocrata”. Agradeci e percebi os recados que me deu e a todos os outros.

A MANIFESTAÇÃO SINDICAL

Numa visita a Vila Nova de Famalicão e à nossa Câmara foi recebido por uma manifestação da CGTP Intersindical com bandeiras negras e gritando que tinham fome, etc. Saiu do carro, cumprimentou os manifestantes com aquele ar destemido dele, e algum azedume, que os tempos não eram de assobiar para o lado como agora, e vamos para a Câmara Municipal, enquanto me diz: “Ó Presidente, você só me arranja disto quando cá venho…”

Retorqui que não e que quem também tinha sido recebido assim, antes, foi o general Ramalho Eanes (Presidente da república entre 1976 e 1986) e que isso era o sindicalismo livre e não a unicidade sindical que ele e Zenha tinham combatido. Calou-se, o assunto era sério e a doer, pois começava o princípio do fim da velha Carides…

Mário Soares foi o único Presidente da República a visitar a Casa-Museu de Camilo Castelo Branco numa visita oficial ao município.

Em duas décadas da minha presidência, foram cinco as visitas de Presidentes da República de 1983 a 2001: Ramalho Eanes (1), Mário Soares (3) e Jorge Sampaio (1), tendo sido mandatário nas suas 2 candidaturas de Soares e na primeira de Jorge Sampaio. E só não fui mandatário da recandidatura de Sampaio por causa do jovem, irreverente e perturbador MAF (Movimento Agostinho Fernandes) e a vingançazinha medíocre, mas talvez fatal, no sentido camiliano, por parte dos caudillos responsáveis de então do PS local – poltrona ou coxia partidária de que fiz apenas parte por algum tempo e por pedido irrecusável do próprio Mário Soares.

ENCONTRO NO QUARTO DE HOTEL…

No serviço militar, o general António Ramalho Eanes tinha sido meu comandante de companhia em Mafra por seis meses, em 1965. Era capitão e era verdadeiramente uma cara de pau em parada militar. Ainda hoje o aprecio, sou amigo e admiro o casal, porque são quase exemplo do que deve ser um Homem, por debaixo da farda militar, e uma Mulher e que não se encontram facilmente por aí, nas suas circunstâncias.

Ele meteu os gadelhudos dos SUV nos quartéis, extinguiu o Conselho da Revolução e pelo 25 de Novembro consagrou-se como democrata e militar leal e cumpridor, enquanto Mário Soares pedia a demissão de Vasco Gonçalves na Alameda e na Fonte Luminosa e batia o pé para sempre a Cunhal e seus cegos prosélitos “metendo o socialismo autogestionário na gaveta dos passos perdidos”.

Dois homens raros que tivemos a sorte de encontrar no amor a Portugal e aos portugueses, caso contrário, o nosso presente poderia ter sido bem diferente. E estivemos todos nos Aliados no Porto nessas manifestações tão definidoras e urgentes; tão ameaçadores pareciam os tempos em termos de confrontação civil e militar e ameaça de guerra civil.

Na primeira visita que fez a Vila Nova de Famalicão, Mário Soares recebeu a chave de ouro da cidade, e na segunda presenteou-me pessoalmente com os seus livros autografados, medalhas de monumentos e fotos dedicadas em termos pessoais, enquanto sentados na mesa, em pequeno intervalo, me diz:

– Então, presidente, tudo bem por cá?

– Sim, senhor Presidente, tudo bem.  

– Sabe uma coisa?… O que lá vai, lá vai!… Deixe lá isso!

Ora eu já tinha deixado há muito, porque ia-o conhecendo. Ele é que não ainda ou, então, boa memória, lá sabia porque veio com essa conversa anos depois. Pois que vingativo não me parecia que fosse comigo mas que pisava forte quando calcava, lá isso é verdade!

Mas o problema era dele e assim eu, ignorando se foi pelo Bernardino, duas vezes, ou pelo Ramalho Eanes, uma vez, assim, arrostei com estes desmandos mas, estava lá porque aceitei e quem anda à chuva molha-se, no respeito por tudo e todos.

Uma das últimas histórias foi no Hotel Infante Sagres, no Porto, mandando-me subir enquanto esperava. Estava ainda na cama a ler os jornais dispersos à sua volta, tendo tomado já o pequeno-almoço. Levantou-se em calções, deixou-os cair e avançou para o banho donde sai seco e com roupa interior. Pergunta se tomo café e começa a vestir-se e em poucos minutos diz que podemos avançar para Vila Nova de Famalicão. Aterramos de helicóptero no estádio municipal e dirigimo-nos para a Câmara Municipal.

“O QUE LÁ VAI, LÁ VAI”…

Que mais dizer?… Muito, certamente. E tenho toda a sua obra escrita. Em jeito de remate diria que ”o que lá vai, lá vai”, mas a vida passa depressa e atendendo ao tempo em que me tem sido dado viver, diria que tivemos sorte todos quantos vivemos depois daquela besta humana de nome Hitler e que houve um grupo de construtores na Europa, uns antes e outros depois, que arregaçaram as mãos em nome do progresso, paz e justiça social, permitindo-nos, pelo 25 de Abril e pela integração na Europa, abrir e rasgar portas para uma nova forma de viver, disfrutando da liberdade e democracia – matriz de todas conquistas que, em diálogo e paz, temos vindo a conseguir.

Em 29 de junho de 1991, no espaço envolvente à Casa de Camilo, Mário Soares testemunhou a assinatura do protocolo entre a Câamra de Famalicão e a Associação Portuguesa de Escritores, representada por Edite Estrela, para a criação do Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, extinto em 2021.

Muitos portugueses fizeram desta luta o seu combate de vida e seja permitido que destaque alguns desde Humberto Delgado, o bispo António Ferreira Gomes, Venâncio Deslandes, Adriano Moreira e Spínola que se ficou pelo caminho, Melo Antunes e Ramalho Eanes e ainda, com a maior das vaidades, Vasco da Gama Fernandes ou Fernando do Amaral, Jorge Sampaio e Mário Soares, como entre nós, os irmãos Carlos e Armando Bacelar, Lino Lima, Margarida Malvar ou Maria Cândida Vidal Pinheiro, Macedo Varela e muitos outros como Joaquim Loureiro e Pinheiro Braga ou o Areias de Requião e a quem Soares foi visitar a sua casa comigo, porque os últimos têm atrás de si, por vezes, muitos e ignaros combates e ele foi o maior dos combatentes civilistas e democratas e um Homem dos melhores de todos nós, pois que, como ele disse muitas vezes, “só é vencido quem deixa de lutar”, e que Mandela sublinhava esse combate, referindo ainda que a jornada mais longa pode começar com um pequeno passo.

Portugueses, como diria o grande Almada Negreiros, só falta dar esse pequeno passo, para sair de vez da cepa-torta e deixar os velhos, relhos e crónicos jogos florentinos do poder, aqui e em Lisboa!…

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Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.
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