Era um eremita daqueles dos tempos antigos, peles curtidas ao vento, olhos raiados de fome. Vivia numa gruta perdida no meio das montanhas e era aí que sobrevivia miseravelmente, fazendo suas as poucas raízes e os parcos tubérculos que a natureza dava. Poucos o conheciam, e ele mesmo dir-se-ia complacente com o desterro a que se habituara. Não gostava das gentes. Detestava-as, fugia delas.
As gentes, por seu turno, evitavam-no também, sabedoras do trato difícil, assaz rude, daquela criatura tresmalhada da civilização e dos seus preceitos. Nisto, já algumas poucas de almas caridosas em tempos haviam tentado uma aproximação, mas vieram de lá arrependidas para a vida, em face de tão desmesurada obstinação. Se o ajudavam, desconfiava; se o arreliavam, sofriam a mesquinhez de uma arremetida cega e desvairada. Melhor deixá-lo a sós com os seus demónios.
Virou caricatura. Uma história de desencantar, daquelas que as mães invocam às crianças malcomportadas. À falta de nome próprio (que nem ele o sabia), começaram a chamar-lhe Taralhoco (era mesmo assim, sem o ‘u’ gramatical que seria devido). A alcunha ficou.
Teria morrido sozinho nas serranias, sem mais nota digna de registo, mas sucedeu um inesperado volte-face que para sempre lhe haveria de toldar o destino.
Começou porque o príncipe – e também ele escutava as histórias que o povo contava –, compadecendo-se da sua condição tão miserável, visitou-o na gruta. Interessou-se por ele, quis saber a que maldição se acomodava aquele súbdito avesso a urbanidades. A princípio o eremita assustou-se com o estardalhaço do aparato real, as vestes de seda, o corcel em talha dourada, os pajens ao seu serviço. Tudo era um exagero por excesso: quedou-se mudo de estupefação, num pasmo basbaque e servil.
Dir-se-ia que o príncipe, como antes as gentes humildes, debalderia de o ter de volta à razão. Mas então sucedeu o insólito, e foi quando o príncipe se decidiu a passar-lhe a mão pela testa. Foi um gesto indolente, feito com a mesma indulgência com que o dono acaricia o pelo de um cão fidelíssimo. Pois ao lorpa foi como se lhe abrisse uma brecha na mente simples. Tantas vezes, com o correr dos anos, havia ele recusado a assistência provinda de mãos humildes! Mas a indulgência do homem poderoso criara nele um estado febril de agitação.
Pois era ele o objecto da atenção daquele potentado! Ele, o eremita miserável, a excrescência da criação que, tantas e tantas vezes, fora escorraçado do convívio dos homens! Tomado por um frémito de comoção, julgando-se o centro fulcral de uma consideração elevada e personalizada como nunca lhe acontecera antes, atirou-se aos pés do soberano com a mais solene jura de fidelidade eterna.
O príncipe, esse, tinha por certa uma única vontade (para além de que aquele ser andrajoso não maculasse os seus reais trajes): a de que partisse ele para a cidade, aceitando engordar o redil dos seus fiéis súbditos.
Ofereceu-lhe poiso nas cavalariças reais e, para surpresa geral, o eremita prontamente aceitou. Faltava-lhe uma mão paternal; um homem forte a quem obedecer, sempre, sem reflexão, sem segundas opiniões. A simplicidade de uma subordinação total. Nenhum espaço para um pensamento crítico. No seu lugar, gratidão apenas.
Veio o eremita para a cidade. Claro que os hábitos velhos demoravam a desertar, e posto isso os moços de estrebaria pegavam-no de ponta, ganhavam gosto em espicaçá-lo porque já esperavam as respostas torpes, as ameaças vãs do pobre diabo metido em lutas imaginárias.
Sabiam que tinha uma mania: defender o seu benfeitor sem mácula para lá de qualquer razoabilidade. Bastava uma crítica ao desgoverno do reino, uma que fosse, e aí o tinham, qual sabujo endemoninhado, a debitar incongruências e a esbracejar com violência, de passo que saía pela cidade a ameaçar os incréus com a vingança do seu juízo reparador:
– Apanha, apanha, que é farejador! – acusava, a plenos pulmões, de ciência certa como se tivesse descoberto o pecado original da criação.
E posto isso, rodopiava sobre si mesmo, saltava e esperneava, espumando de raiva, possuído por um estado tal de exaltação que assustava as gentes que tivessem ousado sequer a desventura de um pensamento crítico.
[chegou isso aos ouvidos reais, e constava que o príncipe gracejara, entre bocejos, que lhe saía barato o campeão defensor da honra]
Claro que isso só espicaçou os restantes moços de estrebaria a pretenderam testá-lo, mais e mais e mais, sempre mais, a ver até onde ia a sua cruzada tola e desmiolada.
Um dia quiseram os moços de estrebaria fazer um levantamento de rancho, em vista da papa oleosa e desenxabida que lhes serviam a todas as refeições, quando ali ao lado, era bem sabido, no reino de cristais e veludos em que levitavam os seus reais amos, serviam as mais refinadas iguarias. De sorte que até os mastins do palácio – que viviam das sobras dos banquetes – comiam melhor do que eles.
Era uma tremenda injustiça, mas o Taralhoco não se impressionava com injustiças. Mal soube da inconfidência contra o seu benfeitor, xibou logo a conjura, com isso dando morte prematura ao protesto. E não contente com isso, diante dos outros enfiava a paparoca às golfadas goela abaixo, e ia repetindo para quem tivesse a sorte de o ouvir:
– Fiquem sabendo, farejadores: isto aqui, é o mais fino manjar que alguma vez nos foi dado a provar!
[chegou isso aos ouvidos reais, e constava que à socapa lhe mandaram servir uma fatia de marmelada]
Noutra ocasião queixaram-se os moços de estrebaria das instalações insalubres em que viviam. Anos de trabalho e tudo o que se lhes dava eram camaratas bafientas, estrados nus para dormir e latrinas repelentes. De sorte que até as cavalgaduras reais – que dormitavam na palha seca e fina – viviam em maior conforto do que os seus cuidadores.
Mas o Taralhoco não se impressionava com confortos. Outra vez xibou a conjura, e não se coibia de repetir alacremente diante dos outros:
– Fiquem sabendo, farejadores: isto aqui são os aposentos mais opulentos em que alguma vez dormimos na vida.
[chegou isso aos ouvidos reais, e constava que lhe mandaram de presente uma almofada de linho]
Foi então que, já fartos daquele judas que nem sabia onde tinha perdido as botas, sempre tão pronto a atraiçoá-los a troco do seu prato de lentilhas, lhe trouxeram um poio de merda que haviam recolhido nas cavalariças reais. Disseram-lhe: eis aqui a prova de como algo vai podre no nosso reino. Pois tais excrescências nunca brotariam em terras lavradas por um justo. O Taralhoco, impávido diante daquela provação, tomou o poio nas suas mãos, admirou-lhe a composição térrea, cheirou-o de perto, provou-o com afinco. Disse para os interlocutores estarrecidos:
– Outra vez, farejadores: fiquem sabendo que isto aqui é o mais puro azevinho que Deus pôs na face da Terra!
E foi assim, ainda com a boca empastelada de sebo e o nariz castanho de se lambuzar na merda, que se dirigiu ao palácio a querer dar nota do que sucedia nas barbas do seu benfeitor. Dessa vez, porém, não passou da serventia: pois o mordomo, enojado daquela figura atroz, mandou pô-lo para fora a pontapés.
Por uma vez, só de o ver maltratado pelo benfeitor como eles eram, os moços de estrebaria acharam-se recompensados da sua desdita. Quiseram tomar-lhe o pulso a ver se tomava tino, mas não pensem que o Taralhoco se indignava. Achava até merecido, pois ele, mormente a boa intenção de servir o amo, não se apresentara condignamente à sua real presença.
Acusaram-no de tolo para lá de qualquer redenção. De andar às sobras como andavam os mastins do palácio, e se isso era vida que merecesse a pena ser vivida?
Pois querem saber o que lhes respondeu o Taralhoco? Isto:
“Para começar, já se escreveram crónicas sobre mim. Algum de vocês pode dizer o mesmo?”
Ah, pois não, não podiam. Estudassem!
____________________
Os artigos de opinião publicados no NOTÍCIAS DE FAMALICÃO são de exclusiva responsabilidade dos seus autores e não refletem necessariamente a opinião do jornal.
Comentários