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Sexta-feira, 19 Abril 2024

Maria Barroso, um recital de poesia ao jantar

Maria Barroso lembrava sempre o Holocausto, sublinhando que os nazis eram seres cultos e letrados, o que não os impediu de deliberada e conscientemente matar milhões de pessoas. E depois de um diálogo intenso com vários dos presentes, sintetizou: fica provado que não basta saber línguas, matemática, ou filosofia, seja o que for. O importante é cultivar os valores e os princípios do respeito pelo ser humano, pela liberdade, enquanto pais e educadores.

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Artur Sá da Costa
Estudioso da cultura famalicense, Artur Sá da Costa é investigador da história local.

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1. A CASA DE BERNARDA ALVA
“Conhecem ‘A Casa de Bernarda Alva’? Alguém aqui conhece a peça de teatro ‘A Casa de Bernarda Alva’ escrita por Federico Garcia Lorca, fuzilado pelos nacionalistas na Guerra Civil de Espanha?”

O silêncio era total, alunos e professores, preparados para ver a projeção do filme “Dois Estranhos, Um Destino”, de Richard Attenborough, escolhido por Maria Barroso. Chegara a vez da primeira-dama da Presidência de Mário Soares participar no ciclo “Um Livro, Um Filme”, organizado pelo Centro de Estudos Camilianos, que conjuga a literatura e a sétima arte. Um projeto aliciante, lançado, com alguma relutância, pelo Prof. Aníbal Pinto de Castro, temendo os perigos do descaminho num desfile de vaidades!

Maria Barroso, desolada e incrédula, ainda de pé, na boca do palco, desenhado por Siza Vieira, persistiu e, pedagogicamente, tentava explicar à assistência a importância do texto dramático de Garcia Lorca, vincando que os ‘Eichmans’ são perigosos, a opressão asfixiante e paralisante, e são uma ameaça real, à qual temos que nos opor.

O fulcro da conversa da atriz era mostrar à plateia a necessidade e a responsabilidade de os educadores transmitirem às novas gerações os valores da liberdade, da tolerância e do convívio democrático. Ora, para Maria Barroso, “A Casa de Bernarda Alva” representava os dois polos antagónicos do conflito entre a opressão exercida pela mãe sobre as filhas, tendo em contraponto a revolta e a coragem de uma das cinco romper as garras castradoras, simbolizadas na vara quebrada, desafiando a autoridade de todas as “Bernardas Alvas” claustrofóbicas da sociedade e do mundo.

Enquanto este aceso diálogo decorria, a amiga de Maria Barroso comentava comigo: “Aqui é que se vê a cultura geral dos professores.” E não só, acrescento. Ficamos com uma amostra da iliteracia histórica e literária dos professores.

No final da exibição do filme, o tema voltou à baila, no debate que se seguiu, tendo Maria Barroso aproveitado a oportunidade para falar com vários professores de história e de outras disciplinas, vincando a necessidade que todos temos, onde se incluía, de transmitir aos jovens valores e princípios civilizacionais, como a solidariedade, a tolerância, a convivência democrática, a paz, prevenindo eventuais reaparecimentos de fenómenos neofascistas, que estão a surgir na Europa.

Maria Barroso lembrava sempre o Holocausto, sublinhando que os nazis eram seres cultos e letrados, o que não os impediu de deliberada e conscientemente matar milhões de pessoas. E depois de um diálogo intenso com vários dos presentes, sintetizou: “Fica provado que não basta saber línguas, matemática, ou filosofia, seja o que for. O importante é cultivar os valores e os princípios do respeito pelo ser humano, pela liberdade, enquanto pais e educadores.”

Neste instante, uma das professoras que se envolveram na discussão revelou que levou para as suas aulas de história “A Lista de Sindler”, de Spilberg, e que foi “obrigada” a projetar todo o filme por exigência dos alunos. Ficou no ar um sinal de alento e de esperança. E, afinal, o desconhecimento do drama teatral de Garcia Lorca pode ter outras razões que não o desinteresse, ou o alheamento dos professores na formação cívica dos alunos.

Maria Barroso nos seus tempos de atriz em meados do século XX

2. NOVO CANCIONEIRO
Entro na sala de jantar do Restaurante Torres, em Calendário, e o meu olhar fixa o rosto de Maria Barroso, sentada de frente na mesa ao fundo, acompanhada da amiga (soube-o depois) Sande Lemos. Aproximo-me e tento desculpar-me, balbuciando palavras imperceptíveis, pelo atraso (apesar de ainda estar dentro da hora marcada), e ouço a voz firme e cristalina de Maria Barroso: “Ah!, é um reencontro. Sente-se. É um prazer voltar a vê-lo.”

Agradeci e retribui. Sem cerimónias e ritualismos, a refeição iniciou o seu caminho. Muito frugal. Para abreviar, porque a conversa aguardava, Maria Barroso pediu de imediato o seu menu: “Uma sopa”. “Sopa para todos“, acordamos, e o assunto ficou arrumado.

Os temas eram abundantes e prementes. Portugal escancarava as portas à Troika e com ela a maré alta das ondas de restrições e cortes nos rendimentos, formando um exército de desempregados, forçados a emigrar. O mundo oscilava entre as revoltas da Primavera Árabe, que todos saudamos, e o surgimento inquietante, na Europa, de movimentos populistas e de partidos de extrema-direita.

Maria Barroso inteirava-se da formação cívica e politica dos jovens, e relacionava o nosso país com os povos europeus, manifestando com premência a sua preocupação pelo surgimento de partidos de extrema-direita, mencionando a Suécia da social-democracia do seu amigo Olf Palme, na altura surpreendentemente governada por forças populistas da extrema-direita, não esquecendo a França de Marine Le Pen, que as sondagens colocavam à frente na corrida presidencial.

Este era o tema central de Maria Barroso: os perigos que corre a democracia, e a responsabilidade que todos temos em neutralizá-los. Estávamos em 2011, e o fenómeno da irrupção de movimentos neonazis e de partidos de extrema-direita era residual, longe de cobrir, como hoje acontece, praticamente todo o território europeu, para já não mencionar os Trumpismos/Bolsonarismos, que infestam e ameaçam as democracias no mundo global.

É neste contexto que lhe ocorre contar um episódio vivido com Mário Soares, no tempo da ditadura do Estado Novo. Um caso de tirania sofrido numa antiga colónia portuguesa. Conta Maria Barroso: “Quando acompanhei o meu marido no degredo para S. Tomé e Príncipe, a certa altura proporcionou-se dar umas aulas aos residentes. Pedi aos meus filhos para irem levantar à Faculdade de Letras o diploma da minha licenciatura. Assim foi. Porém, certo dia, o comandante da prisão chamou o meu marido e informou-o que eu não podia dar aulas.”

“Eram aulas de alfabetização a residentes e a alguns refugiados!”, exclama Maria Barroso, com olhar espantado, deixando no ar a interrogação: “Como é possível?”

Maria Barroso fala sem mágoa, ou ressentimento. Parece até que se sente feliz, porque tem a consciência de que esteve no lugar certo da história, e fez o que devia.

A noite estava predestinada à cinematografia, e em particular às artes do palco. Aproveitei o momento para lhe falar da sua carreira de atriz iniciada nos anos de 1930, no Teatro Nacional, ainda era uma jovem estudante na Faculdade de Letras de Lisboa. E questionei-a: como se compreende que a censura de Salazar tenha deixado passar a encenação da peça de Garcia Lorca, logo no Teatro Nacional, ao tempo dirigido por Amélia Reis Colaço/Robles Monteiro, cujo elenco integrou. A resposta foi imediata: “Não sabiam.” E explica: “Foram ver os ensaios, mas não se aperceberam do significado e da força do texto.”

Só mais tarde, em Coimbra, quando Maria Barroso fez uma digressão por várias cidades é que o escândalo rebentou. “Nessa noite memorável, extraordinária, a mais marcante da minha carreira de atriz”, o Teatro Avenida da velha Coimbra encheu. Toda a elite cultural da cidade, os poetas e escritores, Joaquim Namorado, Carlos Oliveira, os estudantes com as suas capas e fitas.

No final a ovação foi estrondosa, os finalistas lançaram para o palco as fitas do curso de Letras, e uma estudante colocou uma capa nas costas de Maria Barroso. “Um entusiasmo contagiante, obviamente provocado pela mensagem de revolta contra a opressão que as palavras de Garcia Lorca despoletaram, e que a todos unia e empolgava. No dia seguinte fui informada de que já não íamos ao Porto. A digressão da Companhia acabava ali. A PIDE nesse dia, logo de manhã, informou a diretora do Teatro Nacional que “A Casa de Bernarda Alva” ficava suspensa e proibida”, conta Maria Barroso.

Fez-se alguma luz, mas insisti, contando-lhe que tinha assistido, na era Marcelista, já no início da década de 1970, à encenação da peça no Teatro Experimental do Porto, deixando-me marcas impressivas que ainda hoje a minha memória guarda, pelo que sempre me intrigou a encenação do Teatro Nacional, no ano de 1948, numa altura em que Salazar lutava pela sobrevivência do regime, após a derrota do Nazi-fascismo. “Eram ignorantes”, sentenciou.

A conversa já ia longa, mas não saiu de Coimbra, nem largou o período áureo do ativismo cultural dos anos 40, liderado pela geração do Movimento Neorrealista. Falo-lhe do ‘Novo Cancioneiro’, a coletânea de poesia publicada em 1940/41, que reúne 10 poetas, e o olhar de Maria Barroso ganha mais brilho. Os seus recitais ainda hoje são lembrados, balbuciei, obtendo como resposta: “Sou capaz ainda hoje de os dizer a todos.” De repente, a sua voz forte, segura, cristalina, por cima da sopa arrefecida, toma conta da sala:

“Abafai os gritos com mordaças / Maior será a minha ânsia de gritá-los! / Amarrai os pulsos com grilhões, / Maior será a minha ânsia de quebrá-los! / Regai a minha carne! / Triturai os meios ossos! / O meu sangue será a minha bandeira / E os meus ossos o cimento duma outra humanidade.”

Embalada pelo ‘Prometeu’, de Joaquim Namorado, não resistiu a declamar o seu poema icónico ‘Aviso à Navegação’:

“Alto lá / Aviso à navegação / Eu não morri / Estou aqui / Na ilha sem nome / Sem latitude nem longitude / Perdido nos mapas / Perdido no mar Tenebroso / Sim, eu, / o perigo para a navegação! / o dos saques e das abordagens, / o capitão da fragata / Cem vezes torpedeada, / Cem vezes afundada, / mas sempre ressuscitada!”

Ceide aguardava. E lá abalamos, sem escutar reclamações de tão farta e inusitada ementa!

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3. UM HINO AO AMOR
Quanto ao filme “Dois Estranhos, Um Destino”, Maria Barroso já nos avisara, que gostava imenso da história, que o vira várias vezes, emocionando-se sempre. No Auditório de Ceide, já com as luzes apagadas, perguntou-me se eu já tinha visto o filme. ”Escapou-me.”

Antes do regresso ao palco para o debate, sempre atenciosa, insistiu. “Então, o filme?”  Devolvo-lhe: “Emocionante, com excelentes representações.” Maria Barroso sintetizou: “Um hino ao Amor.”

Sem dúvida, um hino ao amor, que Richard Attenborough dirige com rigor, colocando questões intemporais e centrais da vida humana. Rezar, rezar, implorar a um Deus que não nos escuta, que sentido faz? Também se fala da vida terrena, retirando-se ensinamentos. Não devemos adiar e perder a oportunidade de dizer aos outros o que nos vai na alma, vamos arrepender-nos; e não se deve evitar falar da vida em todas as suas dimensões, inclusive do sofrimento. Como a personagem feminina afirma: “O sofrimento é parte da felicidade.”

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