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Vila Nova de Famalicão
Sexta-feira, 9 Maio 2025
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

Que vivas em tempos interessantes!

“Que vivas em tempos interessantes!” Lembrei-me deste adágio de origem incerta – dizia-se que seria chinesa, mas parece que não, e também não se sabe bem qual – a propósito da exposição fotográfica "agosto de 1975 – Famalicão no mapa da Revolução”, da autoria do fotojornalista António Pereira de Sousa, que esteve patente no Museu Bernardino Machado até ao passado dia 04 de maio.

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Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

Famalicão

Organizou a ‘”Casa da Memória Viva”, a quem, de resto, o autor doou o acervo fotográfico do espólio respeitante ao período em que esteve em Famalicão, nos primeiros dias do mês de Agosto de 1975, a cobrir os acontecimentos aqui ocorridos para o jornal “A Capital” e a agência noticiosa norte-americana “Associated Press”. Em boa hora organizou, estão de parabéns. Isto é verdadeiro serviço público.

Mais ainda porque à exposição acrescentou-se uma conferência subordinada ao tema “Famalicão Cidade Aberta”, que teve lugar na Fundação Cupertino de Miranda no pretérito dia 26 de Abril. Já lá irei mais adiante.

Indo às fotografias. O primeiro impacto é uma paisagem urbana muito diferente, quando na “Vila”, recuando cinquenta anos, pontuava um casario térreo e genericamente degradado, mas por onde pulsava, na estrada nacional que era ainda a artéria central do burgo, o tipo de comércio florescente que hoje desertou para as grandes superfícies comerciais. Podem traduzir esta frase longa por uma só palavra: pobreza.

[pasme-se: já fomos enquanto país muitíssimo mais pobres do que nos julgamos hoje]

Logo de seguida somos interpelados pelos rostos. Rostos recortados a preto e branco, sob um sol inclemente. Rostos esquálidos, vigorosos, plasmados para a posteridade em momentos fugazes de exaltação, uns, de mansa contemplação, tantos outros.

Uma luz de nostalgia cobre os quadros sucessivos, por onde espreitam crianças de olhar furtivo, mulheres precocemente envelhecidas pairando de varandas num modo grave, conformado. Velhos vestidos de negro e chapéu, homens de cabelo comprido, camisas justas, calças à boca de sino. A moçarada omnipresente, sentada nos muros, passarinhando o ócio (era Verão!) numa alegre cotoviada de pássaros livres.

Tiveram um nome, uma história, um projecto de vida: sofreram, amaram, sonharam. Lutaram. Passados cinquenta anos, manda a lei inexorável da vida que muitos desses rostos não estejam já entre nós; outros estarão. Chegam agora até nós, crus na sua limpidez de actores involuntários – ter-lhes-á passado pela mente que os poderíamos ver, tantos anos volvidos, habitando naquela esquina do tempo?

A “Casa da Memória Viva” produziu e pôs à venda uma serigrafia alusiva; a pena que eu tenho é não se terem proposto editar um álbum com o conjunto das fotografias expostas, deixo ficar a sugestão.

Dito o bom, vamos à crítica (que se quer construtiva). A meu ver, a pecha da exposição foi não ter a contextualização histórica que se impunha. Bem sei que o tema é conflituante e cinquenta anos são afinal escassos para tanta polarização (como agora se diz). Foi assim por omissão ou não o quiseram fazer propositadamente, assim como quem quer deixar as fotografias falarem por si mesmas? A organização poderá dizê-lo.

Seja como for, parece-me que não resulta inteiramente: a contextualização é tudo (ou quase). Na exposição, a única “explicação” disponibilizada ao visitante são alguns recortes de época d‘A Capital’, artigos bem críticos, por sinal, do que por esses dias sucedia em Famalicão.

[o que não é de espantar, em vista de certa altivez cosmopolita no acto de dissecar os eventos que ocorriam na “província”, e mais ainda pelo alinhamento político da comunicação social quase toda em torno do projecto revolucionário em curso, e era claramente o caso d’A Capital’]

Posto isto, não existindo a dita contextualização histórica, é de mim ou perpassa a ideia de um levantamento popular “orgânico”, que teria tomado as boas gentes de Famalicão em alvoroço, numa revolta uníssona e inadiável de encontro ao seu destino? E contra o quê se levantavam as massas? Ora, levantavam-se contra o jugo das forças revolucionárias. Uma espécie de ‘Maria da Fonte’, portanto; apenas desta feita transposta para o século XX…

Bom, se é para ser assim já não estamos tão de acordo, lamento. Não se surpreendam, a História dá-se bastante a estas dissonâncias; tem cicatrizes e tessituras bastantes para que cada um encontre aí as suas próprias ‘zonas de conforto’. Diz o prospecto da conferência “Famalicão Cidade aberta” que “em Agosto de 1975 a sociedade civil famalicense expressou na rua o que “não” queria”. Não sei… é mais complicado do que isso. É que a “Maria da Fonte” tem muito melhor fama do que proveito, e também estes “acontecimentos” têm mais o que se lhes diga.

Vamos lá então. As primeiras eleições constituintes tinham tido lugar em Abril de 1975 e daí saiu uma maioria eleitoral claramente contrária ao “Processo Revolucionário em Curso”, o qual, inclusive, saíra reforçado pouco tempo antes com a vaga de nacionalizações do pós-11 de Março e o início do processo de colectivização de grandes unidades agrícolas, estas no sul do país.

Acontece que, para “proteger” as conquistas revolucionárias, os militares impuseram aos partidos um pacto que determinava que o resultado das eleições não influiria na composição do governo (e bem entendido, na sua “política”). Originalidades próprias de viver em tempos interessantes…

Já se escreveram milhares de páginas sobre isto. Hoje aqui, limito-me a apontar que devemos seguir o exercício de humildade de interpretar o que aconteceu à luz do tempo histórico. Cinquenta anos de repressão enfim derrotada, um modelo económico em crise aguda, manietado pelo choque petrolífera de 1973 e o fim abrupto do acesso privilegiado aos mercados coloniais, o regresso à metrópole de mais de meio milhão de ‘retornados’, tudo por junto conduzia o país a uma profunda convulsão política, plasmado em crises ministeriais, golpes e contragolpes.

Acrescente-se uma junta militar com amplos poderes executivos e que logo de princípio quis protagonizar uma agenda “progressista” (em contraponto a uma parte substancial do “país real”) e um caldo de cultura de empoderamento (como agora se diz) que atravessou num rompante a sociedade civil.

Sejamos claros: era o tempo em que estava tanto por fazer que muitas pessoas sentiam o direito de tomar o destino nas suas mãos. Claro que isso não se faz sem sobressaltos: queriam o quê, que a transição para a democracia fosse um passeio no parque?

Não foi, e ainda bem que não foi. Atrevo-me a dizer que, se alguma coisa faltou em Portugal, foi um tribunal de justiça e reconciliação que expusesse os mecanismos de favorecimento e discriminação social a que o Estado Novo deu forma legal. À boa maneira portuguesa optou-se por passar um pano por cima do assunto.

Agora, dizer que houve excessos no pós 25 de Abril? Pois claro que houve, e de parte a parte. Era o espírito do tempo: quando, bastante antes dos “acontecimentos”, ainda em Agosto de 1974, o CDS escolhe Famalicão para realizar o seu primeiro comício a nível nacional, aconteceu o cerco de manifestantes hostis à porta do Cineteatro Augusto Correia. O preço de viver em tempos interessantes…

Pois Famalicão, terra de minifúndio e pequenas empresas fabris, com bolsas de população conservadora e sob grande influência da igreja católica, viveu a conflitualidade na sua plenitude. No plano laboral, tivemos inúmeras empresas intervencionadas, e uma em particular contaminou o tecido social de um especial acinte: o caso da TMG. De tão grande, tocava a todos: não havia ninguém na vila que não conhecesse alguém que lá trabalhasse.

Sucede que, também na TMG, se vivia o contexto “revolucionário” e, à expectável reivindicação de direitos por parte da comissão de trabalhadores, a administração da empresa respondeu da única maneira que sabia: a repressão. Quando viu que a estratégia de prepotência não era suportada pelo mesmo Estado que sempre a protegera, avançou para o boicote, acelerando a descapitalização da empresa: Manuel Gonçalves, o “lídimo filho da terra”, não estava interessado em jogar aquele jogo em que todos tinha direitos.

Assim se chegou ao ponto de ter a empresa intervencionada e Manuel Gonçalves fugido do país. Havia quem chorasse a desdita do homem, de quem se dizia passar fome por terras da Galiza, pois sim…

Era neste contexto que bandos de caceteiros, arregimentados por capitães da indústria, iam da terra em terra a semear, não propriamente a palavra do Senhor, mas o terror político, instilando um nível de violência primário e gratuito. Eram ainda por cima covardes, porque, em matilha e a coberto da vista grossa das autoridades, atacavam pessoas fragilizadas na sua individualidade. Muitos dos que assaltaram as sedes do MDP e do PCP em Famalicão não eram de cá; e também não eram mártires da liberdade nenhuns: o que eram é uma caterva de cretinos que andavam a soldo de cretinos maiores do que eles.

Tinham dado jeito antes, naqueles quase cinquenta anos em que a maioria dos portugueses se dedicava a “viver habitualmente”. Mas não: o amor deles pela liberdade era recente, e como todos os amores recentes, desabrido. A rede bombista, por exemplo, ainda por 1977 continuava a sua acção proselitista, e não era porque os comunistas estivessem perto de tomar o poder.

[e falando nisso, quatro anos volvidos, um dos tais empresários proeminentes – Joaquim Ferreira Torres, proprietário da Silma – que defendia activamente a democracia, foi morto por bandoleiros de estrada. Aconteceu a uns poucos quilómetros daqui. Pode ser que fosse boa pessoa, mas pelos vistos dava-se com gente má]

Nos dias e noites que antecederam o assalto às sedes dos partidos MDP e PCP em Famalicão, foram saqueados um café na cidade e os escritórios de dois advogados da praça. O café era de um casal com “ideias erradas”. O crime dos advogados era o de defenderem sindicalistas. Convém não omitir que as autoridades assobiaram para o lado enquanto um conjunto de arruaceiros se permitia atirar pela janela mobília e documentação, às quais atearam fogo em plena luz do dia. Antes que se permita louvar a proficiência de tais libertadores, preciso é dizer que estas pessoas foram vítimas de uma violência política intolerável.

E assim como estas, muitas e muitas pessoas foram incomodadas na sua esfera pessoal, pressionadas em ambiente laboral, ameaçadas de despedimento, de lhes queimarem as lojas, de lhes destruírem os haveres. Não eram comunistas, na sua maior parte (e que fossem): mas tinham opiniões “de esquerda”, olha o crime supremo!

A quem interessava, à época, instalar este clima de intimidação? No caso da sede do PCP, as tentativas insidiosas de invasão começaram dias antes, à traição, pelas traseiras do edifício. Foram rechaçados pelos militantes entrincheirados, logo aí registaram-se feridos. Os militares vieram para defender o perímetro, mas sem grande convicção. Soldados imberbes, falava-se em vinho distribuído pelos populares. Os dois mortos, ambos mirones, caíram às mãos da tropa e não dos comunistas, por balas disparadas para dispersar a multidão que fizeram ricochete.

Ora bem: se não foram os comunistas a matar os “invasores”, a quem aproveitava fabricar uma onda de indignação? Já com a sede evacuada por ordem militar, o cansaço e o desleixo da tropa deixaram mão livre à populaça. Entrou livre de resistências para se dedicar a partir e a queimar, só valentias. A boataria corria livre: dizia-se que os militantes comunistas tinhas sido presos; dizia-se que lhes tinham sido apreendidas metralhadoras G3. Tudo mentiras.

Particularmente revelador é que, de um dos caídos – um agricultor de Gondifelos –, nunca mais ninguém quis saber para nada. Como o outro era da vila e era militante do PPD, quiseram fazer dele um mártir político: parou o cortejo fúnebre defronte da sede do partido e da varanda discursou Eurico de Melo. Num episódio mais de prepotência, deram-lhe nome de rua principal. Podiam levar a proposta à reunião de câmara, mas não, eles decidiram que seria assim e era já ali. Quem não concordasse aguentava-se à bronca.

O perfil do que sucedeu em Famalicão não teve nada de novo, antes pelo contrário. Aconteceu o mesmo em Braga, em Santo Tirso, em Ponte de Lima. Mais a sul também, quem se interessar por estes assuntos sugiro consultar o caso de Alcobaça, alvo de uma extensa reportagem da ITV que está disponível no Youtube (versão original em língua inglesa, não legendada).

Para fechar, umas palavras sobre a conferência ‘Famalicão Cidade Aberta’. Uma vez mais, está a “Casa da Memória Viva” de parabéns. O mote era pensar a cidade para os próximos cinquenta anos, para o que convidaram ilustres personalidades famalicenses que fazem carreira fora do concelho a virem cá dar o seu contributo.

O Presidente da Câmara, para surpresa de absolutamente ninguém, faltou ao compromisso. É o que é. Menos mal que deixou a representação institucional do município, não a um, mas a dois vereadores, e o mínimo que se pode dizer é que ambos superaram largamente as expectativas. Um, como é seu timbre, saiu logo a meio dos trabalhos; o outro? Olha, também!

É o que é. Mais tarde voltou, e ainda bem. Já tinha falado quanto baste e agora vinha só para ouvir, parece que o palestrante seguinte era muito melhor do que o anterior.

 

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