A partir da sala de espera

Urgências em estado de urgência

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Escrevo este texto a partir das urgências de um hospital no norte de Portugal. Escrevo depois de muitas horas de espera, num espaço onde o tempo parece suspenso, mas o sofrimento não. Aqui, nas urgências, concentram-se muitos dos problemas estruturais do Serviço Nacional de Saúde — e também algumas das suas maiores virtudes.

As urgências estão “entupidas”. Não é uma metáfora exagerada, é um facto visível: corredores cheios, macas alinhadas, salas de espera sobrelotadas. Há doentes que esperam horas — demasiadas horas — para serem observados. Há quem espere com dor, com medo, com ansiedade. Há quem espere por si e quem espere por outros.

Falta espaço, faltam camas, faltam profissionais. Médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos fazem turnos intermináveis, acumulam horas extra, trabalham muitas vezes no limite do físico e do emocional. Não é raro ver profissionais exaustos, mas ainda assim atentos, profissionais, humanos. Tentam, contra todas as probabilidades, garantir os melhores cuidados possíveis a quem mais precisa, preservando algo que não pode ser negociável: a dignidade humana.

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Do outro lado estão os doentes e as famílias. Doentes ansiosos por aliviar a dor, por receber um diagnóstico, por perceber o que se passa com o seu corpo. Familiares desesperados, sentados durante horas, à espera de uma informação, de uma palavra, de um sinal. A incerteza cansa tanto quanto a espera.

Nesta altura do ano, esta realidade agrava-se. O Natal expõe com particular crueldade uma outra fragilidade do sistema: a ausência de respostas sociais eficazes. Há idosos que permanecem nas urgências ou em enfermarias não por necessidade clínica, mas porque não têm para onde ir. Porque não há vaga em lares, porque o apoio domiciliário é insuficiente ou inexistente, porque a família não consegue — ou não quer — assegurar cuidados. Chamemos-lhe o que quisermos, mas o resultado é o mesmo: o hospital transforma-se em resposta social de último recurso.

É importante dizê-lo claramente: esta realidade não é culpa dos profissionais de saúde. Pelo contrário. Muitos destes homens e mulheres continuam a segurar o SNS com um sentido de missão que ultrapassa o razoável. O problema é estrutural, acumulado ao longo de anos de decisões adiadas, de subfinanciamento crónico, de falta de planeamento e de incapacidade em fixar profissionais no serviço público.

O que se passa hoje nas urgências pode acontecer a qualquer um de nós amanhã — em qualquer altura do ano.

As urgências transformaram-se, em muitos casos, na porta de entrada para tudo aquilo que falha a montante: cuidados de saúde primários insuficientes, dificuldades de acesso a consultas, listas de espera intermináveis, respostas sociais que não chegam a tempo. Quando tudo o resto falha, as pessoas recorrem às urgências — mesmo quando não deveriam ter de o fazer.

Mas esta sobrecarga tem um custo. Um custo humano, emocional e clínico. Profissionais cansados cometem erros. Doentes que esperam demasiado tempo agravam o seu estado de saúde. Famílias perdem a confiança no sistema. E um SNS em que as pessoas deixam de confiar é um SNS em risco.

Defender o Serviço Nacional de Saúde não é fingir que tudo está bem. É, pelo contrário, ter a coragem de olhar para esta realidade e exigir mudanças. É investir seriamente em recursos humanos, criar condições de trabalho dignas, valorizar carreiras, melhorar a articulação entre níveis de cuidados e entre a saúde e a área social. É tratar a saúde como prioridade real e não apenas como slogan político.

Escrevo este texto não apenas como familiar em espera, mas como cidadão. Porque o que se passa hoje nas urgências pode acontecer a qualquer um de nós amanhã — em qualquer altura do ano. Enquanto espero, observo. Enquanto observo, escrevo, na esperança de que estas palavras não fiquem apenas na sala de espera, mas cheguem a quem decide. Porque as urgências estão, elas próprias, em estado de urgência.

 

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