Sábado, 26 de Abril: um grupo de ciclistas, um enxerto dessas típicas tribos de desportistas de fim-de-semana, muito deles grisalhos, bem-apetrechados – lá nisso! – com toda a parafernália de amortecedores, capacetes e cotoveleiras para não fazerem dói-dói nos corpos quasi tonificados, dedicava-se a fazer acrobacias nos bancos da praça Cupertino de Miranda.
Agora reparem: eu não disse na praça; disse nos bancos. Nos bancos! O respeito pelos demais é zero: estão a ver aquelas pessoas que têm por hábito sentarem-se em bancos públicos, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo? Esses mesmo. O melhor que fizeram foi desviarem-se para não levarem com as bicicletas em cima.
Resultado: aqueles bancos de granito que lá estão desde os anos 1960? Partidos não ficaram, também era difícil. Cada bloco pesa certamente umas centenas de quilos. Mas deslocados sim, um pelo menos – para quem quiser ver, na entrada norte da praça. E olha que é preciso muita roda de bicicleta aos saltos para fazer deslocar o bloco – isso e a gravidade, que fez o resto do trabalho. Um lindo serviço, não há dúvida nenhuma.
Gastaram-se dez milhões de euros a refazer a praça do centro da cidade, mas ninguém se preocupa em cuidar dela.
Não surpreende: é só mais uma talha no desmazelo com que, em Famalicão, se trata o património público. E não surpreende, quando ali mesmo na praça, mais adiante, os mesmos bancos de granito que estão defronte da Fundação, por meses e anos de contínua depredação, foram alvo de uma intervenção artística do mais alto coturno. O cidadão reparará como as arestas dos bancos estão polidas e enegrecidas. Não tem nada a ver com o desgaste do tempo; tem tudo a ver com a resina que os skaters cá do burgo impunemente lhe aplicaram. Que querem, era para deslizarem melhor. E não é que funciona?
Isto dito. Já sei que muita gente tem muita peninha dos jovens dos dias de hoje, a braços com angústias e desafios como nunca se viu na história da humanidade. Já nem vou aos miseráveis que construíam as pirâmides a troco de um prato de lentilhas ao dia. Agora, aquela conversa dos nossos avós que iam descalços para a escola? Esqueçam isso. Foi há que séculos. Os meninos do nosso tempo labutam numa frustração autoinfligida e ai de quem os afrontar, é coisa para anos de terapia.
E portanto: ficamos nós com os bancos da praça estragados, pois está claro. E não está bem?
Por acaso até não, não está. Falo por mim: irrita-me que se trate património público como se fosse a casa da mãe Joana. Tem dono, e o dono até somos nós todos. Pode parecer que só falamos de bancos de granito quando falamos de bancos de granito, mas nem só de bancos de granito: eu vejo ali esforço investido por quem veio antes de nós; vejo abnegação de vontades e afectação de recursos; vejo o brio de uns quantos por deixar obra que pudesse servir (também) aos vindouros.
Em suma, vejo uma herança que nos legaram gerações passadas. Podemos não gostar daquilo, é o nosso direito, e nesse caso mais valia assumi-lo. Mas não me parece que alguém no seu perfeito juízo cisme contra aqueles bancos: nós simplesmente não nos damos ao trabalho de preservar o que nos deixaram para cuidar, ponto.
Dizia que nós todos somos os donos do património público. Já por isso elegemos representantes políticos: para (entre outras coisas) zelarem pelo património que é de todos e está à sua guarda – apenas temporariamente.
A Câmara? A Câmara anda distraída. Acontece aos melhores. É que não há um único dos quase dois mil funcionários que se pre(ocupe) com estas minudências. Nem sequer à sexta-feira à tarde, quando vem a folga merecida da jornada semanal intensa e absorvente.
Nem sequer a senhora “Gestora do Centro Urbano”. Disseram-me que anda desparecida em combate ao que eu perguntei se se teria internado no Donbass… não me responderam ainda, ficaram de tentar saber… se alguém puder ajudar, agradeço!
Muito menos os vereadores e o senhor presidente: seria preciso que andassem na rua e com os dois olhos abertos ao mesmo tempo, e já se sabe que não andam.
Não é que fossem propriamente eles a repreender os prevaricadores. Para isso se criaram, já há muito tempo, organismos autónomos investidos de poder de autoridade. Para isso veio a moda das polícias municipais, nos inícios do século, e Famalicão – terra muito espigada de modos e pretendendo estar sempre na crista da onda – logo aderiu à moda. Era moderno. Era chique. Era irresistível.
Pois era. Sucede, porém, que – na sua esfera de competências, com a regulação de trânsito à cabeça –, à entrada em funções da Polícia Municipal correspondeu a saída de cena da Polícia de Segurança Pública. Que é como quem diz, a Polícia de Segurança Pública logo, logo lavou as mãos desses problemas de somenos.
Experimente o cidadão ligar para a Polícia de Segurança Publica por conta de um problema de trânsito: uma viatura que atravanque o passeio, que ocupe os espaços de cargas e descargas, que bloqueie a saída de uma garagem. Muito polidamente, pedem-lhe para ligar para a Polícia Municipal, porque “isso é com eles”…
Problema: a polícia municipal tem muita força de vontade, mas pouca vontade de fazer força. Sim, já sei, faltam-lhe os meios e tal [em Portugal, qualquer conversa sobre deficiência dos serviços começa e acaba sempre na falta de meios].
Mas é cultural também: um pouco mais de brio e não careciam de saber destas coisas pela pena concisa do cronista. Bastava andarem na rua com vontade de fazer coisas. Mas não querem saber. Como quem deve – acertaram, estou a falar do executivo camarário – não lhes exige acima da indigência, eles deixam-se ir na cantiga de amigo. Chega a ser divertido se pensarmos que esta (a)gente incomodou meio mundo com cunhas e favores para garantir o lugar, mas agora que lá estão é tudo uma grande chatice.
É isso mesmo: a polícia de proximidade é uma grande chatice. E é uma grande chatice porque chega sempre aquele momento em que é preciso repreender o Zé e o Manel. Um e outro são gente boa, gente que mendespinta pela vida, e carregadinhos de razões andam eles para, lá está!, atravancar passeios, abusar dos espaços reservados às cargas e descargas, bloquear saídas de garagens. É à vontade do freguês. Claro que dos outros não reza a história.
[Definição de “outros” para os fins desta crónica: “cidadãos pedestres que têm de se desviar dos carros aparcados em pleno passeio.”]
Como fazer então, se é para manter um mínimo de sanidade no meio de tantos interesses controversos? Bom, o mais recomendado é primar pela ausência. Se não sabes algo, não te pode afectar, verdade? Ora, se há coisa que a Polícia Municipal sabe fazer bem é primar pela ausência.
Durante a semana pouco se vê. E ao fim de semana não trabalha. Já estou a ver quem me venha dizer que trabalha ao fim de semana, sim senhor – e com profusão de elementos, tabela de turnos incluída. Eu direi: pelos menos não aparece à vista de ninguém, isso garanto. Tenho bancos de praça deslocados a servir de prova.
O executivo camarário não vive bem com a falta de rotundas e por isso investe tanto em rotundas; vive mal com a falta de animação cultural e por isso gasta tanto em festarolas. Mas dotar a Polícia Municipal de meios? Para isso não há dinheiro.
É uma instituição especializada em não saber. Não sabe, mesmo quando muitos insistem em dizer-lhe, que a rua Ernesto de Carvalho (aquela que sobe das ‘antigas finanças’ para a Universidade Lusíada) tem os passeios atravancados de carros; mas calma, isso não é sempre: é só de manhã, à tarde e à noite. Não sabe que na rua S. João de Deus (aquela que sobe para os correios) se passa o mesmo, e que a bomba da BP mais acima se assenhoreou do passeio para as vezes do seu negócio. Não sabe que os passeios da praça 09 de Abril servem de repositório de tudo quanto é carro, carrinha e carrão. Não sabe que a bolsa de autocarros da avenida do Brasil (aquela que sai da rotunda Bernardino Machado na direcção de Guimarães) é um óptimo porto de abrigo para quantos queiram descarregar os filhos no ATL das Lameiras. Podia continuar…
Não diz muito da assertividade da Polícia Municipal, pois não? Mas vejam-se as vantagens: assim a Polícia Municipal dorme bem. Sem um filamento de nervo sobre os ilustres cidadãos que vão pelos passeios e devem desviar-se dos carros, que remédio; sobre as guias de passeio escacadas, e são já tantas; sobre os condutores que ficam bloqueados em plena hora de ponta porque os autocarros param na faixa de rodagem da avenida. Podia continuar a continuar…
Este caldo de cultura que tanto privilegia o que é novo, o refazer permanente, a obra de encher o olho, ao invés de preservar o que já existe com pequenos incrementos?
Mas nem só de penas vive o homem. Neste caso, ironias vãs e melancolias é que nos valem, na falta de quem imponha um módico de civismo. Diante daquela sensação comezinha de nos sentirmos todos entregues uns aos outros, para que serve, afinal, a Polícia Municipal?
É simples: serve para armar ao pingarelho.
Porque quem vive bem com este grau de laxismo cívico é em última análise o executivo camarário. Não vive bem com a falta crónica de rotundas, isso não vive, e já por isso investe tanto em rotundas; vive mal, bastante mal, aliás, com a falta de animação cultural e já por isso gasta tanto em festarolas. Mas dotar a Polícia Municipal de meios e efetivos? Para isso não há dinheiro.
Veja-se o reboque. Se o cidadão tiver o azar de encontrar a saída da garagem bloqueada, deverá saber duas coisas: uma é que pode e deve ligar para a Polícia Municipal, quem sabe não lhe resolvem o problema? A outra é que o reboque da Polícia Municipal deixou de andar na rua. Dizem-me que reboque até há, o que deixou de haver foi um motorista no quadro com carta de condução de pesados…
Parece que a coisa funciona assim: a polícia municipal liga para as diferentes empresas de reboques que existam nas redondezas; se alguma estiver disponível, vem acudir ao cidadão; caso contrário, paciência. Estava bloqueado, continua bloqueado – pelo menos no que depender da Polícia Municipal.
Posto isto, será pedir demasiado que nos interroguemos acerca deste caldo de cultura que tanto privilegia o que é novo, o refazer permanente, a obra de encher o olho, ao invés de preservar o que já existe com pequenos incrementos?
Repare-se no contraste: gastaram-se dez milhões de euros a refazer a praça do centro da cidade, mas ninguém se preocupa em cuidar dela. Da mesma forma que se fizeram construir vias cicláveis pela cidade e estão sempre obstruídas por carros aparcados em segunda fila: mas alguma vez os decisores políticos pensaram sequer na possibilidade de combater esse vício? Não, claro que não. Eleitoralmente falando, é uma guerra que não vale a pena comprar. Mas então para que é que se fizeram as vias cicláveis? Ora, para dar bom uso aos fundos comunitários.
Mas não corresponde a uma política, a uma intenção sequer: é só para ficar bem na fotografia. Lembram-se do moderno, do chique e do irresistível?
Pois é isso. Importante mesmo seria instilar uma cultura de exigência que fizesse valer a ideia de que todos cumprem regras, e que assim tem de ser para se defender o superior interesse da comunidade. Vai acontecer? Hmm, se calhar não.
Não ia agora a Polícia Municipal destoar do resto. Pensei num antónimo de ubiquidade, que é o dom que a Polícia Municipal manifestamente não tem. Mas querem saber? Não existe. Também está bem, por ser para quem é.
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