Recordar é um ato humano profundo. Fazemo-lo todos os dias, muitas vezes sem dar conta: num cheiro que nos leva a um verão antigo, numa canção que reacende um amor perdido, numa fotografia que devolve um instante que julgávamos esquecido. A memória, afinal, é o fio invisível que cose o tempo e nos dá a sensação de continuidade, o “eu” que fomos e o “eu” que somos, ligados por uma história que apenas nós conhecemos.
O psicólogo Miguel Coutinho tem escrito e falado com clareza sobre esta relação íntima entre memória e identidade.
Lembra-nos que recordar não é um luxo da mente, mas uma função vital. É através da memória autobiográfica que construímos quem somos, que damos coerência às nossas experiências, que compreendemos as nossas escolhas e reconhecemos os valores que nos guiam. Sem memória, seríamos apenas presença, sem narrativa, sem densidade, sem raízes.
Mas há um outro lado da memória, mais denso, mais incómodo. Aquilo que teima em não partir. As recordações que insistem em reaparecer, como se o cérebro, num zelo mal orientado, quisesse obrigar-nos a reviver o que já devia estar resolvido. Miguel Coutinho descreve bem essa armadilha da ruminação: quando a mente se fixa no passado, tentando entender, corrigir ou evitar, acaba por o manter vivo, e o sofrimento ganha residência.
É uma luta conhecida por todos. Quem nunca se viu preso num ciclo de pensamentos, revendo o que podia ter sido dito, feito, evitado? Há um cansaço profundo nessa repetição, uma espécie de eco emocional que, quanto mais o tentamos calar, mais se faz ouvir. A psicologia mostra-nos que esta dificuldade de “largar o passado” raramente é falta de força; é antes sinal de emoções não resolvidas, culpa, vergonha, perda, medo. O cérebro, na sua tentativa de proteger-nos, mantém a ferida aberta.
O mérito das palavras de Miguel Coutinho está em não transformar esta constatação num veredito, mas numa oportunidade. Recordar, diz ele, pode e deve ser também um ato de reconciliação. A memória não tem de ser inimiga; pode tornar-se uma aliada, se aprendermos a olhar para ela com outra lente, a da aceitação.
Aceitar não é resignar-se, é reconhecer. É perceber que o que vivemos, com toda a sua imperfeição, faz parte da tessitura que nos compõe. As memórias difíceis não desaparecem com o tempo, mas podem mudar de peso. Quando deixamos de lhes resistir, deixam de comandar. É aqui que entram as ferramentas psicológicas que Coutinho tão bem enumera: a reavaliação cognitiva, que ensina a reinterpretar o passado; o mindfulness, que convida a observar o presente sem se perder nele; o autoconhecimento, que transforma a dor em compreensão.
Esta abordagem é profundamente humana. Não há promessas de esquecimento rápido, nem ilusões de que o sofrimento se apaga com uma técnica. Há, sim, um convite à honestidade consigo próprio. A libertação começa no reconhecimento. Quando paramos de lutar contra o passado, abrimos espaço para o presente respirar.
Num tempo em que se glorifica o “seguir em frente” como se fosse um botão de comando, a visão de Miguel Coutinho é refrescante. Ele lembra-nos que não se trata de esquecer o que doeu, mas de dar ao passado o seu lugar justo. É isso que permite viver com mais leveza — não por falta de memória, mas por maturidade emocional.
“Largar o passado com saúde mental”, escreve ele, “não é esquecer, mas aprender a conviver com as lembranças de forma mais leve e saudável.” É uma frase simples, mas contém uma sabedoria inteira. O passado não é um peso inevitável; é um território que pode ser revisto, reinterpretado, e até agradecido. Cada lembrança difícil, vista com olhos de hoje, pode transformar-se num fragmento de aprendizagem, num gesto de reconciliação com a vida.
Há também, nas palavras de Coutinho, um elogio à coragem. Pedir ajuda, diz ele, não é fraqueza, é um ato de força. A saúde mental constrói-se, muitas vezes, em comunidade, com profissionais, com amigos, com quem nos devolve o espelho quando já não reconhecemos o reflexo.
É bom que existam vozes como a de Miguel Coutinho, que falam com rigor, mas também com humanidade. Numa era em que tanto se fala de bem-estar, mas tão pouco se compreende o verdadeiro trabalho interior que ele exige, a sua reflexão é um farol. Lembra-nos que crescer é, inevitavelmente, recordar, mas recordar de forma lúcida, generosa e integrada.
E talvez seja esse o grande ofício de ser humano: aprender a lembrar sem sofrer, e a viver sem esquecer.
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