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Vila Nova de Famalicão
Quinta-feira, 28 Março 2024
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

A primeira vez que li Paul Auster

Um pedaço de antimatéria em Nova Iorque.

12 min de leitura
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Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

Famalicão

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Exposição itinerante patente até 31 de março

Concerto coral sinfónico de Páscoa esta quarta-feira

Na igreja matriz velha pelas 21h30

“Na noite seguinte, Quinn foi apanhado desprevenido.
Pensava que o incidente não teria seguimento e não
esperara que o desconhecido voltasse a telefonar.
(passagem do primeiro capítulo de “Cidade de Vidro”,
primeira história de “A Trilogia de Nova Iorque”,
de Paul Auster)

Gustave Flaubert, famoso autor francês de obras lendárias como “Madame Bovary”, “A Educação Sentimental” e “Salammbô”, afirmou uma vez que, numa obra, o autor “deve ser como Deus no Universo: presente em toda a parte, mas não visível em nenhuma”. Esta afirmação resume a ideia daquilo que eu, como escritor, entendo aquilo que deve ser a presença do autor numa obra. Há autores que se distanciam das suas obras, mas uma obra deve ser o reflexo da visão de um autor sobre um problema.

Quando lemos uma obra, estabelecemos uma conversa quase direta com o autor. As personagens são apenas um meio de expressão, uma espécie de bonecos-ventríloquo. Tendo isto em conta, sempre gostei de ler autores que se distanciassem o menos possível das suas obras. Sempre gostei de ver as próprias visões dos autores sobre os acontecimentos que os rodeiam.

Para além disso, apesar de gostar de poesia mais inteletualizada, sempre gostei de uma ficção mais quotidiana, menos martelada (mas que não deixasse de ter um significado adequado e alguma erudição). Quando se trabalha muito uma ficção, a mesma deixa de ser proporcional ao mundo em que o autor vive. Foi este lado quotidiano que me fez apaixonar-me pela ficção de Paul Auster (embora não tenha sido à primeira vista). Apesar de ter um lado cultivado e erudito, Paul Auster é conhecido pela sua prosa fluída, despretensiosa e fácil de ler.

Eis, portanto, o tema da quarta crónica de “Literatura Circular”: a primeira vez em que eu, Raphael de Souza, li Paul Auster.

Admito que não foi fácil ler Auster e envolveu várias tentativas até conseguir ler um livro dele até ao fim pela primeira vez. Como disse acima, Auster tem o seu lado erudito e usa-o nas suas histórias, fazendo com que as mesmas não sejam assim tão fáceis de ler e exijam algum trabalho de análise e compreensão.

Meu primeiro contacto com a prosa de Paul Auster (autor nascido em Newark em 1947) foi no último ano de Licenciatura, na cadeira de Literatura e Cultura Norte-Americana. O professor dessa cadeira (atual orientador da minha tese em Literatura Afroamericana) incluía a obra “A Trilogia de Nova Iorque” na lista das quatro obras basilares da cadeira, focando-se especificamente em “Cidade de Vidro”, a primeira história da trilogia.

As outras obras basilares (se não me falha a memória) eram “Em nome da Desobediência Civil” (de H.D. Thoreau), “Winesburg, Ohio” (de Sherwood Anderson) e “O Apanhador no Campo de Centeio” (de J.D. Salinger). Todas estas obras eram aquelas que o professor considerava essenciais numa primeira abordagem à Literatura Norte-Americana.

A “Trilogia” passou-me ao lado nessa primeira vez. Ainda voltei a pegar nela uma vez mais tarde, mas o “fatídico” dia só chegou quando eu estava no Mestrado. Estava na cadeira de Literatura e Cultura Norte-Americana (a mesma cadeira, só que com matéria mais aprofundada) e o professor era o mesmo. Perante um desafio lançado pelo mesmo aos alunos (desafio esse que consistia lerem um livro e apresentar em aula), decidi dar mais uma hipótese à “Trilogia”. Foi aí que me tornei fã da prosa de Paul Auster.

“A Trilogia de Nova Iorque” é constituída por três histórias: “Cidade de Vidro”, “Fantasmas” e “O Quarto Fechado”. As três histórias têm Nova Iorque como palco principal da ação e partilham entre si a perdição dos seus protagonistas (todos eles detetives). O caráter realista e mundano dos personagens e dos acontecimentos em si é uma das caraterísticas que está por detrás do sucesso que assolou a Trilogia e catapultou a carreira de Auster, tornando-o no autor de culto que é hoje em dia.

“Cidade de Vidro” conta a história de Daniel Quinn, um antigo poeta que, após a morte da mulher e do filho, deixa toda a sua carreira literária para trás, passando a escrever policiais sob o pseudônimo de “William Wilson”. Apesar do sucesso dos seus policiais, permanece no anonimato e não dá entrevistas. Nunca teve contato direto com o editor e o agente literário e os seus livros não têm foto nem biografia.

Um dia, após ser acidentalmente contactado por um homem com subdesenvolvimento cognitivo e motor e pela respetiva esposa, decide aceitar o caso, fazendo-se passar por um detetive chamado “Paul Auster” e passa a seguir Peter Stillman, pai do jovem que acaba de sair de um hospício e estava de regresso a Nova Iorque. Essa aventura acaba por o levar a um carrossel de acontecimentos e a uma posterior queda.

“Fantasmas”, segunda história da Trilogia, fala-nos das peripécias de “Blue”, um detetive contratado por um senhor chamado “White” para um missão: permanecer num apartamento em Brooklyn que se situava em frente ao apartamento de “Black”, um homem que passaria a ser vigiado por “Blue”. A missão parece ser simples, mas a mesma acaba por conduzir “Blue” a um espiral de falhas e de tormentos, resultando num final violento.

“O Quarto Fechado”, a última história do livro (e a mais leve das três histórias), nos mostra as aventuras de um narrador cujo nome nunca sabemos. A narração acontece na primeira pessoa e nos mostra um narrador que investiga desalmadamente o desaparecimento de Fanshawe, seu amigo de juventude.

Após, a mando de Sophie (esposa de Fanshawe), publicar os livros escritos pelo mesmo, os mesmos ganham fama e o narrador começa a receber cartas anónimas escritas pelo próprio Fanshawe, que era dado inicialmente como morto. Ao longo do enredo, vemos o narrador tentando encontrar o seu amigo através das cartas anónimas que recebia.

Como disse acima, “A Trilogia de Nova Iorque” foi a obra que catapultou o escritor de Newark para a fama e, até hoje, continua sendo o livro que introduz muitas pessoas leigas ao universo “austeriano”. Eu também fui um desses leigos.

A obra, tal como outras obras escritas por Auster, apresenta uma simplicidade vincada. Ainda assim, conseguem ter um lado mais “armadilhado”, repleto de referências literárias e filosóficas e bíblicas que, por vezes, o leitor iniciante ignora, mas que levam a um sentido subliminar.

Na primeira história, vemos referências a obras como “Alice no País das Maravilhas” e “Dom Quixote De la Mancha”. Esta segunda referência conduz Daniel Quinn a um larga desconfiança de que poderá estar a ser enganado, sobretudo quando, numa cena da história em que fala com o próprio Paul Auster, o autor lhe fala de que Dom Quixote não era um louco e estava apenas a montar um armadilha para testar a cegueira de todo o mundo.

Na segunda história, “Blue” vai caindo na loucura, loucura essa que podemos observar nos confrontos entre o mesmo e “Black”. “Black” parece aparecer como um espelho de um lado “Blue” que o próprio desconhece e teme.

“O Quarto Fechado”, a minha história favorita da trilogia, separa-se das outras duas pelo seu existencialismo. Fanshawe, apesar de não estar presente fisicamente, está presente em espírito e vemos essa presença a crescer ao longo da narrativa. Fanshawe é um personagem enigmático que rouba o protagonismo à personagem narradora da história. Fanshawe é apresentado como um indivíduo robusto e valente e, ao mesmo tempo, sentimental e profundo. Parece não se enquadrar no mundo que o rodeia.

Durante toda a sua vida, apenas trabalha em empregos menores e sempre se despede quando vê que tem dinheiro suficiente para se sustentar durante algum tempo e se dedicar exclusivamente à escrita.

Quando desaparece do mundo repentinamente, deixa mulher e filho para trás e uma pilha de obras não-publicadas. Deixa uma carta à mulher a pedir que entregue as obras ao seu melhor amigo de juventude para serem publicadas, pois não escreverá mais. Afirma que a escrita é uma doença da qual já está curado.

O narrador, de entre todas as suas memórias que narra, mostra-nos uma cena em que, no dia em o pai de Fanshawe morreu, o próprio narrador e Fanshawe, horas antes dessa morte, estavam num cemitério em pleno nevão. Fanshawe, vendo uma cova aberta, deita-se nela, pois queria perceber como era “adormecer”. É talvez a parte mais profunda da história. É certamente a parte da história que mais me marcou enquanto leitor e me fez tentar perceber Fanshawe. Ainda hoje tento perceber Fanshawe.

Estas questões existenciais estão presentes na essência de Paul Auster. Autores existencialistas como Kafka, Beckett e Camus são alguns dos autores prediletos do romancista norte-americano. A sua estadia na França fez o autor aprofundar-se na Literatura Francesa, uma literatura muito marcada por obras simbólicas e profundas. Muitos críticos usam isso para justificar o facto de Auster combinar o tradicional thriller/policial da Nova Inglaterra com a tradição filosófica francesa nas obras que escreve.

Uma obra onde também podemos ver um Paul Auster metafísico (embora de uma forma mais leve e quotidiana do que aquilo que já é habitual) é “Timbuktu”, que conta a história de Willy, um antigo estudante judeu de Columbia que se tinha tornado sem-abrigo e vivia na rua com o seu cão chamado “Mr. Bones”. Na fase final da vida, percorria as ruas da América em busca da sua antiga professora, pois tinha a esperança de que ela o ajudaria a publicar os seus cadernos de poesia.

Ao longo da história, vemos que Mr. Bones, apesar de ser um cão e não poder falar, acaba por pensar como um humano. As visões de Willy fazem com que Bones tenha medo do mundo que o rodeia e viva sempre em posição de sentinela. A maior marca metafísica no enredo é quando lemos a perceção que Willy tem sobre o pós-vida: percorrer um longo deserto rumo a Timbuktu onde, caso fosse aceite, a alma do defunto e se transformaria num pedaço de antimatéria alojado na cabeça de Deus (“You were at one with the universe, a speck of antimatter lodged in the brain of God”).

Para encerrar esta crónica, gostava de deixar você, leitor interessado em Literatura, com uma passagem da última página da segunda história da Trilogia (“Fantasmas”): “Mas a história ainda não acabou. Falta ainda o momento final, e isso só acontecerá quando Blue sair dali. É assim que as coisas se passam: nem um momento a mais, nem um momento a menos. Quando Blue se levantar da cadeira, puser o chapéu  e sair, então sim, a história acabará”.

Não é interessante como cada momento é uma história singular? Cada momento tem um espaço, tem um tempo, um contexto. Cada momento tem um herói, um vilão, um adjuvante. Cada momento tem um clímax e desenlace. Nesse desenlace, o momento torna-se numa história, numa ficção. Homens e mulheres viram personagens de ficção todos os dias ao final da tarde, quando chegam a casa após um dia de atividades quotidianas. Quando um homem ou uma mulher morre, uma biblioteca de ficções entra em contagem decrescente para o seu fim.

Contudo, deixemo-nos de metafísicas. Metafísica dá sono e cansa a alma. Não precisamos de ser Qohélet por inteiro.

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Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.
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