O lugar da ACIF no Natal

Existem poucas coisas que podemos tomar por certas nesta vida, mas não é verdade que se resumam aos impostos e à morte, para citar o proverbial ditado. Outras coisas existem que podemos ter por tão certas como a Terra andar às voltas do Sol, e uma dessas coisas é termos a câmara de Famalicão, em chegando o Natal, a alargar os cordões à bolsa.

Comentários

9 min de leitura

E para quê? Ora, para quê? Para fazer de Famalicão ‘O Lugar do Natal’. Se acham pouco, deixem-me começar por dizer que eu também achava. Mas agora não. Uma pessoa cansa-se de ser cínico, e eu, a partir deste ano, declaro-me crente. Será a magia do Natal a conquistar-me o coração, ao arrepio de toda a minha má vontade? Será?

Outra coisa que é muito própria da quadra é quando se declara aberta a época dos chavões políticos. Eis o meu favorito: “não é uma despesa, é um investimento!”  Por certo. Até por isso a despesa (perdão, o investimento!) não pára de subir de um ano para o outro.

Depois, claro, vem o Tal & Qual fazer manchete disto: e lá aparece Famalicão na primeira página da imprensa nacional, emparelhado entre as câmaras mais gastadoras do Natal. É um orgulho, caramba! A nossa terrinha entre as Lisboas e os Portos, mais as Oeiras e as Bragas da vida…

- Publicidade -

Falando só por mim, é que não precisam mais de gastar dinheiro com o ranking das exportações e sei lá mais o quê. Isto só, basta-me: Famalicão, o lugar do Natal. Existem muitas Vila Natal. Imensas Aldeia Natal. Até (menos) capitais do Natal. Casas do Natal. Lugarejos do Natal. Agora, lugar do Natal há só um. Não, não fica na Lapónia: pensem lá mais um bocadinho.

(uma dica: também não fica em Ribeirão)

Porquê Ribeirão, agora essa? Por isto: repararam quando disse que o Tal & Qual fez manchete da câmara de Famalicão? Pois não consta que tenha vindo cá cobrir as cheias de novembro, que por exemplo em Ribeirão (lá está) inundaram habitações e arrastaram carros pela via pública. Parecia o Texas (quando chove muito por lá). Outro orgulho: Ribeirão parecia o Texas. Nem preciso dizer o porquê de tanto orgulho, pois não? De tão óbvio.

Pois a oposição local, sempre muito disposta a tirar desforço das desgraças do povo, propôs na reunião de câmara de 20.11.2025 a criação de um fundo de emergência municipal, no valor de um milhão de euros, que pudesse acorrer às vítimas das cheias.

Inundações em Ribeirão: leito do Rio Veirão, junto ao centro de saúde e o cemitério. Fotografia: Ribeirão Digital/DR

A coligação liderada por Mário Passos, muito patrioticamente, recusou. E fez bem. As coisas não estão para brincadeiras, não se pode agora pôr em perigo o equilíbrio orçamental do município. Aliás, na mesma reunião também recusou a baixa do IMI para a taxa mínima. Fez duplamente bem. E a quem ache que talvez o espírito do tempo pudesse puxar-nos a todos para uma toada mais solidária e – porque não dizê-lo – mais humanista, eu digo: ainda não era o tempo. Repare-se que ‘O Lugar do Natal’ só abriu no dia 22.11.2025. Cada coisa na sua vez.

Curiosamente, em Ribeirão a coligação alcançou uns madurosos 57,31% dos votos nas mui recentes eleições para a câmara. Nada de novo, a coligação ganhar em Ribeirão é o prato do dia há uns bons trintas anos já. Pois a câmara tomou boa nota e isto é como se costuma dizer: amor com amor se paga. Conclusão: choveu é pouco. Devia ter chovido mais. Podia ser que, ao menos de calcanhares molhados, a mole de eleitores ribeirenses começasse a madurar mais nas decisões que toma. Digo eu, que vivo nas alturas – mas eu não preciso de ser ganho para a causa, acreditem.

É que de me pôr a matutar sobre o assunto resultou-me que é apenas justo destacar que a magia do Natal não viria para o lugar que é o seu por natureza sem doses cavalares de método e disciplina. Da parte da câmara, está claro: havia de ser da parte de quem? Fui ver: ainda era junho, abriu-se concurso público para a “Locação e Gestão de Equipamentos de Diversão”, com preço-base de 166.000 euros (acresce IVA).

Para a pista de gelo foi a primeira vez que se abriu concurso; a roda-gigante tinha sido concursada pela primeira vez no ano passado – antes insistia em ajustes directos. Não estava certo. O Ministério Público abriu uma investigação e a câmara, que não tinha nada a esconder, decidiu abrir concursos. Cumpre-nos elogiar.

Analisadas as peças do concurso, cumpre-nos elogiar outra vez a câmara pela preocupação com o detalhe. Isto vai desde a altura, cobertura e apetrechos da árvore de Natal (quase parece a descrição pormenorizada da árvore dos anos anteriores) até à especificação do pórtico de entrada, número de músicas e tempo mínimo da sessão do “show multimédia” (quase parece a descrição pormenorizada do “show” dos anos anteriores). Mas pronto, não há porque achar que se podia estar ali a tentar privilegiar o incumbente que vinha dos ajustes directos de anos anteriores. É como eu dizia antes, uma pessoa cansa-se de ser cínico.

Fiquemo-nos então pelo essencial: é bom viver num concelho onde a câmara se esforça por fazer bem. E posto isto, tudo corria tão lindamente que até a Associação Comercial e Industrial de Famalicão (ACIF), com órgãos de gestão recentemente eleitos, se decidiu ela também a concorrer ao concurso. Não era sem tempo. A ACIF de há muitos anos vinha sendo vocal nessa sua pretensão de ser parte (mais) activa no “Lugar do Natal”. Não deveria surpreender ninguém que concorresse.

Mas sim, ouvi dizer. Surpresa, surpresa. Até porque a câmara se esqueceu de avisar a ACIF do concurso, coisa estranha em entidades parceiras. Mas vale o que vale. Esquecimentos há muitos, não é preciso estarmos sempre à procura de interesses escondidos, certo? A sério, sem cinismos.

Outra surpresa: a ACIF, em tempo recorde, não apenas conseguiu mobilizar a subcontratação dos equipamentos, que são muitos e variados, como apresentou o melhor preço. Boa malha.

Porque havia dois concorrentes: um já se adivinha, era a empresa dos ajustes directos. Tão confiante estava na qualidade dos seus serviços que apresentou o seu melhor preço, e o seu melhor preço era o preço-base do concurso: 166.000 euros, lembram-se? Nem um cêntimo menos, por simpatia que fosse? Nada.

[Gosto de gente autoconfiante, mas isto já quase parece atrevimento… É muita moral junta!]

Sucedeu foi a ACIF, à última da hora (e a chatice é que foi mesmo à última da hora…), propor fazer o serviço por menos 31.100 euros. É dinheiro. Imagino a câmara a esfregar as mãos de contente por, sem sequer esperar por isso, ver-se na iminência de poupar quase 20% sobre o preço-base. Bem, bom.

Porém, entre a vontade (que devia ser muita) de encaixar a poupança ali tão à mão de semear e os trâmites legais de contratação, interpunha-se o dever. Neste caso, o dever de validar a elegibilidade dos concorrentes e a veracidade das peças documentais apresentadas.

Entra em cena o júri do concurso. Era para mais uma corrida contra o tempo, porque estávamos no prelúdio das férias de verão. Não sei se a ideia era ir à procura de pretextos ou de escrutínio puro e duro, mas a verdade é que encontraram algo maior do que a própria vida: uma razão de existência.

Está escrito nos livros: júri que é júri faz-se valer do mais ínfimo subterfúgio para justificar a sua razão de existência. Vai daí, sopraram, sopraram, sopraram, e o que é que concluíram? Concluíram pela liminar exclusão da ACIF!

Agora repare-se: que grave delito podia excluir um dos concorrentes – para mais aquele que se propunha fazer o serviço pelo preço mais baixo – de um concurso público de aluguer de equipamentos? Não adivinham? Pois, olhem: não foi a qualidade dos equipamentos ou as suas especificações técnicas; não foi a solvabilidade financeira do operador, nem a folha limpa de contribuições ao Estado; tampouco terá sido a credibilidade das equipas técnicas que estariam alocadas à instalação e manutenção dos equipamentos. Era o quê, então?

Eu digo: foi o CAE.

Para quem não saiba, o CAE é um número composto por cinco dígitos que, de acordo com a tabela oficial do Instituto Nacional de Estatística (INE), serve para classificar a actividade económica principal e secundárias da empresa para efeitos estatísticos, fiscais e legais. Ou seja, qualquer entidade pública ou privada pode ter mais do que um CAE – como à frente se verá…

Ora, o CAE da ACIF é o 94110, corresponde a “Atividades de organizações económicas e patronais”. É o mesmo CAE da generalidade das associações empresariais do país, que na sua esmagadora maioria contratam e exploram divertimentos em determinadas datas festivas. É o mesmo CAE que sempre permitiu à ACIF explorar o comboio natalício que nos habituamos a ver circular pelas ruas da cidade nesta quadra festiva. E neste ano também: é a ACIF que explora o comboio natalício.

Questão: segundo a câmara, o CAE da ACIF não lhe permite explorar atividades comerciais diretas junto do público, como a locação e exploração de equipamentos de diversão, com cobrança de bilheteira.

Ah não, génios? E então o comboio natalício, como fica? Também se cobram bilhetes para o comboio, não sabiam? Creio que o problema aqui está em que os senhores membros do júri serão pessoas muito, muito, mas mesmo muito!, sisudas: nunca andaram no comboio natalício, como é que podiam saber? Ou então andaram, mas foi com os bilhetes que a câmara oferece. Como é que podiam saber?

Não podiam. E pronto: assim se atiram alacremente 31.100 eur pela janela fora.

Claro que, por bizarro que possa parecer – a um leigo como nós! – que um júri eleja um tão rebuscado fundamento de exclusão, a verdade a que nos devemos ater é a da letra do concurso. Regras são regras: e se as regras do concurso estipulam que o CAE da sociedade é determinante para a qualificação dos proponentes, não haverá muito mais a dizer. É aceitar que doi menos.

Só que não: nada disso vem escrito na letra do concurso. Em parte alguma do concurso se diz que o CAE é factor condicionante da elegibilidade dos candidatos. Talvez no espírito do concurso, então? Sim, faz sentido: até porque o espírito do concurso é que o júri quiser que seja em cada momento, e tem humores!

Ele há é coincidências tramadas. Lembram-se de ter referido os trabalhos em contrarrelógio por causa das férias de verão? Só pode, visto que o “Relatório Preliminar de Análise das Propostas” em que se comunicava a exclusão da ACIF foi publicado online ao final do dia 14 de agosto. Foi por um triz… Cabe lembrar que no dia seguinte, uma sexta-feira, era  feriado nacional. Seguem-se o sábado e o domingo, e como corriam cinco dias para contestar, quase parece feito de propósito para atravancar a mais do que esperada contestação. Quase parece. Quase. Parece.

Mas deixemo-nos disso. Melhor será elogiar a diligência dos serviços jurídicos da câmara, quando se percebe que fizeram gala em não ir de férias sem garantir que deixavam o serviço em dia.

Ainda assim, saltam à vista duas ou três evidências. Como sejam: o Código das Sociedades Comerciais determina que é o objecto social de uma sociedade que delimita as actividades que ela pode exercer. Não é o CAE: o CAE é apenas uma classificação administrativa usada para efeitos estatísticos, fiscais e legais. Ter um determinado CAE não legitima a sociedade a exercer uma atividade que não conste do seu objecto social.

Vem isto a propósito porque, curiosamente, a sociedade concorrente que ganhou o concurso (“Equilibromania, Lda”) tem como CAE principal 92294 – “Outras actividades de diversão e recreativas”, mas depois esta mesma não consta do seu objecto social. E se o objecto social da “Equilibromania” é grande como um comboio! Vai desde o comércio por grosso de maquinaria, embarcações e aeronaves, de produtos alimentares e de higiene, de artigos de papelaria, ao transporte rodoviário de mercadorias, à prestação de serviços a outras empresas, à construção de edifícios residenciais e não residenciais, abarca actividades de consultoria para os negócios e gestão, serviços de limpeza e ainda gestão de recursos humanos. Ufa! Abençoada a empresa que reúne tantas e tão diversas competências!

Tem de tudo um pouco, verdade, mas não tem a “locação e exploração de equipamentos de diversão, com cobrança de bilheteira”. Fica o alerta. Desta vez passou porque o júri achou por bem atribuir a prestação de serviços a uma empresa que não tem essa actividade no seu objecto social. Mas não deixa de ser um precedente perigoso: imagine-se que para o ano adjudicam o concurso a uma pastelaria? Ou a uma escola de equitação? Fica complicado.

[se ao menos for a uma transportadora rodoviária de mercadorias, aí a “Equilibromania, Lda” já tem o problema resolvido]

Tornem-se, mas é, previdentes e alterem o objecto social, ok? Pelo menos a ACIF aposto que vai alterar o CAE. E é da maneira que para o ano ninguém se fica a queixar de interpretações extensivas.

Tanto rigor para umas coisas e para outras nem tanto, não é verdade? Deve ser do espírito do Natal de que eu falava no início. Sem cinismos!

Bem, para uma coisa isto tudo serviu. Pelo menos ficamos todos a saber qual é o lugar da ACIF no Natal 2025. É o do filho enjeitado.

 

____________________

Os artigos de opinião publicados no NOTÍCIAS DE FAMALICÃO são de exclusiva responsabilidade dos seus autores e não refletem necessariamente a opinião do jornal.

Comentários

Notícia anterior

José Luís Carneiro confirmado no jantar de Natal do PS-Famalicão

Notícia seguinte

Chega promove concerto de Natal solidário em Famalicão

- Publicidade -
O conteúdo de Notícias de Famalicão está protegido.