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Domingo, 6 Outubro 2024

O outro lado da saúde

Quase um milhão e meio de pessoas morreram de covid-19. Agora que 2020 está a chegar ao fim surge uma vacina no horizonte. Mas será que o mundo voltará a ser o mesmo?

5 min de leitura
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Susana Dias
Susana Dias
Socióloga, mestre pela Universidade do Minho, pós-graduada em Gestão e Administração em Saúde e apaixonada pela geriatria. É diretora clínica da Oldcare Famalicão.

Famalicão

Estávamos em 2019, às vésperas de um novo ano. Mais uma ocorrência: o encaminhamento de um utente para o serviço de urgências.

À chegada previa-se que a noite ia ser agitada. “Então por aqui?”, pergunta uma bombeira, aquela que muitas vezes fez o transporte dos nossos utentes. “É verdade, ultimamente andamos a encontrarmo-nos muito. Então como vai isto?”, pergunto eu. “Mais uma noite daquelas… Não podemos fazer transportes porque não temos macas. Estamos à espera de que nos libertem algumas”, respondeu.

Enquanto falávamos vemos o segurança a tentar acalmar os ânimos das pessoas que aguardavam pela triagem no atendimento hospitalar. “Este hospital é uma vergonha! Andamos nós a pagar impostos para isto. Vocês são uns incompetentes.”, dizia um homem, com voz alterada, para uma das enfermeiras.

Podemos pensar que se trata de um episódio isolado, mas, na verdade, estamos perante um exemplo que pretende ilustrar aquilo que é uma prática recorrente nos nossos serviços hospitalares.

Talvez fosse necessário aquele homem viver um mês como aqueles enfermeiros e auxiliares vivem, para perceber o esforço destes profissionais.

“Precisamos de voluntários. Não quer vir para a corporação?”, perguntava a bombeira. “Se eu tivesse mais disponibilidade… Ainda há pouco estive no INEM. Infelizmente não tenho tempo”, lamentava eu. Despedimo-nos com um abraço e votos de bom ano, desejando que 2020 fosse um ano mais calmo.

O NOVO ANO E A PANDEMIA

No dia 1 de janeiro 2020 as autoridades chinesas encerravam um mercado de produtos frescos. Para a maioria das pessoas era um pequeno susto do outro lado do mundo.
Passado quase um ano, o “pequeno susto” mudou a vida de toda a gente. Quase um milhão e meio de pessoas morreram de covid-19.

Em março de 2020, muitos países, incluindo Portugal, começaram a impor regras para abrandar a propagação do vírus.
Médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde passaram a trabalhar protegidos por uma imensa quantidade de equipamentos de proteção individual. Batas, luvas, fatos de proteção, máscaras e viseiras tornaram-se um cenário familiar.

A exaustão começou a tomar conta do nosso dia a dia.

Surgiram estruturas (em acrílico) para separar e proteger as pessoas.

Restringiram-se os abraços, os afetos. Aqueles que já estavam frágeis ficaram ainda mais desprotegidos, expondo as desigualdades.

O uso da máscara passou a ser um ritual.

Tivemos de aprender a estar em família.

ATENDIMENTO DOMICILIÁRIO NA PANDEMIA

As equipas de trabalho domiciliário continuam no terreno. Percorremos ruas desertas. Somos aqueles que levam uma palavra amiga. Para muitos, somos os únicos rostos que veem. Somos os confidentes. O único elo da ligação destas pessoas com o resto do mundo.

O conceito de apoio domiciliário ganhou uma nova dimensão. As novas regras impostas pela pandemia já fazem parte da nossa rotina de manhã e à noite.

Asseguramos ajuda diária, administração terapêutica de medicamentos, cuidados de higiene, monotorização de sinais vitais. A distância social que a todos se impõe não faz sentido neste serviço. O trabalho exige proximidade.

Sem apoio das instituições, nomeadamente aos fins de semana, nós prestamos cuidados domiciliários e auxílio. “Não nos deixem morrer aqui sozinhos”, eis a frase que mais ouvimos.

Estávamos na primeira vaga da covid-19. Sentíamos medo? Até podíamos sentir, mas não tínhamos tempo para pensar nisso.
Todos nós temos família, todos nós queremos chegar a casa e não ter receio de infetar os nossos familiares. Mas há uma coisa que não perdemos: o nosso espírito de missão. A humanização dos cuidados de saúde é uma realidade que está incutida na nossa equipa.

Cada dia é um novo dia. Tentamos ajudar e atender cada solicitação. Aqueles que foram apelidados anteriormente de incompetentes (enfermeiros e outros profissionais de saúde) são os primeiros ajudar. Mesmo após turnos de doze horas estão disponíveis para ajudar no serviço de apoio domiciliário.

Todos os dias segue-se o mesmo: mais alguns quilómetros e rotinas. Equipar, cuidar, limpar… Sempre com sorrisos e afeto.

Amanhã é preciso voltar. É preciso voltar sempre. Todos os dias, de todas as semanas, de cada mês, de todos os anos. Aquilo que fazemos não se explica… sente-se! É assim que se cumpre verdadeiramente o apoio domiciliário. Cuidar de quem já cuidou é tarefa de todos os dias.

Agora que 2020 está a chegar ao fim surge uma vacina no horizonte. Mas será que o mundo voltará a ser o mesmo? Podemo-nos proteger sem abandonar os outros. Foquemo-nos nisso.

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Susana Dias
Susana Dias
Socióloga, mestre pela Universidade do Minho, pós-graduada em Gestão e Administração em Saúde e apaixonada pela geriatria. É diretora clínica da Oldcare Famalicão.
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