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Vila Nova de Famalicão
Terça-feira, 10 Dezembro 2024
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

O póbrio

Parece que o executivo camarário se está a tentar colar à façanha das exportações do concelho? A mim, sim, pareceu-me.

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Paulo Barros
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Economista famalicense.

Famalicão

O amigo haverá de ter reparado num cartaz publicitário ali para as bandas da ‘rotunda do Jumbo’? São muitos, sim: mas este distingue-se bem porque é pago pela câmara, isto é, por todos nós. E se a função dos cartazes é a de anunciar ao mundo aquilo que quem o paga entende dever ser anunciado, então porque haveria este de ser diferente?

No caso concreto, a câmara colocou lá um pódio, que é a bem dizer uma escadinha de vangloriações. O tema empolga. Eu preferiria uma campanha televisiva e anúncios nos jornais de circulação nacional (disseram-me que o ‘Observador’ faz bons preços). Sempre focado em controlar gastos supérfluos, a vereação não quis ir por aí, paciência. Ficou-se pelo cartaz e é o que temos: ao menos assim, ninguém que por lá passe, e são muitos, pode alegar desconhecer que o nosso concelho é o terceiro maior exportador do país. E o segundo que mais contribui para o saldo da balança comercial. Também caramba, já pesa. E em falando de exportações, tomem lá mais esta: é o primeiro do norte do país.

Quer dizer, o incauto vai por ali abaixo muito metido com os seus problemas e leva com um choque de adrenalina tal que a vidinha logo se lhe parece mais risonha. O terceiro maior exportador nacional (e quem será o primeiro?). É de estalo, ainda assim.

Parece a gesta dos descobrimentos, novos mundos ao mundo e tal. E a mensagem subliminar: Famalicão a trabalhar para os outros, estão bem a ver? Nós de um lado, eles do outro. O brio é a bem dizer como o latão, pode bem ser tosco mas sempre reluz mais quando se lhe puxa o lustro. E que o cidadão vai dali bem lustrado, lá isso vai. Depois ocorre-me que o grosso dos nossos antecessores que iam nas naus, muitos deles contrariados, dormiam com os percevejos e comiam peixe seco meses a fio. Ninguém se admire que cometessem uns desvarios quando aportavam a terra.

Mas voltando ao cartaz e a esta queda para a gabarolice. Está tudo muito bem estudado pela psicanálise desde há mais de um século, pelo que me dispensarei de aprofundar o tema (que não domino). Mais a mais quando é por comparativo: repare-se que não se comunica – está em voga o termo comunicar – indicadores absolutos, mas relativos: exportamos mais do que outros. Donde se tira: somos uns beras. Até os comemos.

E já agora: não sei se vos parece que o executivo camarário se está a tentar colar à façanha das exportações do concelho? A mim, sim, pareceu-me. Pois bem: em 2022, Famalicão pesou 3,34% no total das exportações do país. Em 1993 (início da série disponibilizada pelo Pordata) pesava 3,53%. Pelo meio registam-se naturais oscilações, mas o máximo alcançado foi em 2016, com 3,88%. Ou seja, como seria de esperar, o desempenho desta variável, num concelho cujo tecido económico se alicerça numa miríade de pequenas e médias empresas de forte pendor exportador, não se explica nem se altera por voluntarismos pontuais. Explica-se por séries longas que vão para além de mandatos e presidentes.

Claro que uma consulta rápida ao Pordata dá-nos outra perspectiva das coisas. Por exemplo: o poder de compra per capita de Famalicão (2021) está em 92,1% da média nacional. Depois da adrenalina, a desilusão. Outro indicador: o ganho médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem (2019) foi de 1.080 euros, bem abaixo da média nacional, que se cifrava em 1.206 euros. Ou seja, trabalhamos muito (está implícito), exportamos que se farta, mas ganhamos pouco. Menos do que outros que pelos vistos exportam menos. Má sorte ter de ser assim.

Não é justo e nem sequer encaixa na narrativa. Exacto. lá se ia a ideia do pódio. Ficava uma espécie de póbrio, parece-vos bem? Era um desafio para o marketing, fazer disso um cartaz inspirador. Agora, resulta bem é para a pobreza de espírito que grassa por quem nos oferece cartazes a querer puxar-nos o lustro. Já aqui o escrevi uma vez e torno a fazê-lo: sabemos a conta em que nos têm pela seriedade com que nos tratam. O caso actual aproxima-se do desleixo.

Isto, a propósito, lembra-me uma história antiga de décadas sobre dois operários que se meteram à estalada porque cada um se gabava do carro de alta cilindrada que o patrão tinha, e que cada um deles achava ser melhor do que o do outro. Os desgraçados nunca na vida miserável que levavam se aproximaram mais de entrar no carro de sonho do que em chegar por foguetão à lua. Mas pronto: ver o anafado do patrão (com charuto) a puxar pelo motor sempre era uma realização pessoal (por interposta pessoa). E não deixava de ser verdade que muito do seu esforço se materializava ali, no design superlativo do que era, a todos os títulos, um capricho. Hoje por hoje, vai sendo habitual dizer-se que o que mais motiva o trabalhador é poder ver a materialização do seu trabalho. Encontrar um propósito, para usar a expressão mais em voga. Pois era aquilo.

Chegados aqui, dizer que este tipo de afiliação é sempre muito bonito e resulta particularmente bem nos filmes de Hollywood, onde é ver, amiúde, a maralha a jurar fidelidade eterna aos seus carismáticos líderes. Os quais, com grande regularidade, são uns tipos com tiques autocráticos e vontade messiânica, e que começam logo por sobressair devido ao facto de serem mais brutos e menos escrupulosos do que a média (lá está, a democracia participativa resulta mal na cinematografia).

E portanto, tenho para mim que aqueles dois fizeram muito bem em pegar-se à estalada para lavar a honra do patrão. Curioso até por saber se os patrões alguma vez se terão inteirado da história. Tivesse sido o caso, eu digo: era mais do que justo que daquelas mãos pródigas se escapulisse uma bonificação. Um pão de ló, por exemplo. É bem sabido que, nos bons tempos da ditadura, os operários, para mais a cargo com famílias numerosas como bem mandava a tradição, valorizavam sobremaneira essas iguarias raras. E posto isto, concluo: a afiliação é muito, muito bonita, mas não põe comida na mesa (não esquecer a cena dos percevejos e do peixe seco).

A vereação, claro está, discorda respeitosamente, com a vantagem que tem de gerir o nosso dinheiro. Com cartazes é que vamos lá, seja então. E fomos: colocaram um cartaz igualzinho onde, onde, onde? Na A3! É que aí já estamos noutro campeonato: escuso-me de quantificar a quantidade de incautos que por ali passam. Boa gente doutros concelhos e que não tem culpa de ser menos laboriosa do que nós somos. Mas toca-nos beneficiá-los com a ponderação da nossa própria bazófia, disso não se livram. Pois é, amigos: pensavam o quê, que isto aqui é só terra de lavradores e escritores suicidas? Comidinha boa e urbanizações a rodos? Esqueçam. Não confundir com outros, que não exportam tanto quanto nós.

Dá-se ainda o dislate de terem plantado o cartaz da A3 em terras de Santo Tirso. É de um topete. Tem vezes que o departamento de marketing da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão se supera nos seus cometimentos. Não sei se estão a visualizar a ousadia; ter ali o cartaz é como meter uma ‘lança em África’ (pronto, outra vez os percevejos). Mas depois de uma destas, qualquer famalicense que vá aos pastéis a Santo Tirso, e o natural é que avance impante pelo empedrado das ruas com a marca exportadora de quem paga aquilo tudo, não deixará de notar. É que os locais, naturalmente também, baixam os olhos respeitosamente. Iam dizer o quê, que pagam menos IMI?

– Pff! Patético, pá.

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