Há gestos que dizem mais do que mil palavras. O cumprimento, por exemplo. Já ninguém sabe muito bem o que fazer: dois beijos, um beijo, aperto de mão ou simples aceno à distância? O cumprimento português é hoje uma arte de sobrevivência social.
Lembro-me bem de quando o beijo na face era gesto de casa, familiar, terno, verdadeiro. Um beijo com raiz no afeto, não no hábito. Depois, o costume ganhou asas e espalhou-se: o país inteiro começou a beijar-se. O beijo, que antes era intimidade, tornou-se cumprimento.
A moda dos dois beijos, essa sim, tomou conta de tudo. Nasceu das elites e espalhou-se até ao povo. Tornou-se prática nacional, um reflexo automático. E foi precisamente quando já todos se beijavam em duplicado que as elites urbanas de Lisboa e Porto, sempre à procura de um toque de distinção, decidiram reinventar o gesto: voltaram ao beijo único. Mais contido, mais “europeu”, mais seleto, diriam alguns. O ciclo social do beijo fechava-se: da família à moda, da moda ao hábito, e do hábito de novo à diferenciação.
No meio disto tudo, o país ficou baralhado. Ninguém sabe o que fazer quando encontra alguém: dois beijos? Um só? Ou nenhum? Cada cumprimento é uma pequena coreografia de hesitação.
Eis então o nosso Presidente da República, homem de afetos largos, beijos fartos e abraços espontâneos. Um beijoqueiro confesso, dizem uns; um Presidente próximo, dizem outros. Seja como for, a sua naturalidade tornou-se marca.
Mas há ocasiões em que até a espontaneidade pede gravata. Nas cerimónias fúnebres de Pinto Balsemão, Marcelo, que normalmente beija em duplicado, limitou-se a um. Um beijo só. Sereno, medido, consciente. O suficiente para ser humano sem deixar de ser institucional.
Vi o momento e pensei: há ali mais do que contenção, há leitura do tempo e do lugar. O segundo beijo, naquele contexto, seria excesso. E a sobriedade, ali, valeu mais do que o impulso.
Portugal é assim, país de afetos, mas também de prudências. Vivemos sempre a meio caminho entre o abraço e o cumprimento, entre o beijo e o meio-beijo. E talvez seja isso que nos define: a eterna indecisão entre o calor e o protocolo.
Nesse dia, Marcelo não beijou menos. Beijou certo.
E talvez tenha mostrado, sem querer, que o verdadeiro gesto de classe é saber quando parar no primeiro beijo.
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