Entre nós, há toda uma vasta plêiade de homens de letras, mas são poucos os operários tão inspirados, dedicados e polivalentes em termos lexicais e de génio como o nosso Camilo Castelo Branco (1825-1890), em altura da comemoração do seu bicentenário pelo País e no vasto mundo da língua portuguesa, da família dos Brocas em Vila Real, mas que nasceu em Lisboa no alvorecer primaveril, a 16 de março, crescendo entre fragas e lobos, pascer os rebanhos, aulas de latim, jogo do pau e tropelias e brejeirices várias pelas paisagens frias e escancaradas de Vilarinho da Samardã… “torrão agro e triste”…, lugarejos inóspitos da serra do Mesio e que por aquelas serranias mais adequadas a santos eremitas ou bandidolas e que, por vezes, se meteu, ele mesmo, em escaramuças e bordoadas várias o travesso do rapaz, até!
Sem mãe aos dois anos e pai aos dez, Camilo envolve-se aos 16 anos com uma moça aldeã em Friúme, concelho de Ribeira de Pena, de nome Joaquina Pereira e, pouco tempo depois, com Maria do Adro, na Samardã… “E vim das margens do Tejo, na aurora da minha vida, desterrado para ali… onde a torva natureza não tem galas nem poesias; onde é triste a primavera, sem aromas nem verdores; onde o sol calcina a rocha e não deixa ao prado flores…”, em “Um Livro”.
Viajou entre alguma borrasca de barco que o atirou até Vigo e depois chega a Braga naquele tempo sem estradas, comboios e pontes para atravessar os rios Mondego e Douro pois que não era fácil em viagens a Lisboa e depois Porto, Coimbra e Vila Real, passando periodicamente pela política ao serviço do Miguelismo (1846). “Saí de Coimbra para Vila Real quando as aulas se fecharam por motivos da revolução popular de 1846”, in “Memórias do Cárcere”.
Mais tarde e durante a regeneração Ana Plácido respondia em carta a Bernardino Machado que lhes teria pedido apoio para uma eleição, monárquico ainda que era, que o Camilo já teria firmado o seu apoio a outro candidato pelo que, respeitosa e fidalgamente, o declina, ignorando eu se teria andado por aqui, ainda antes, algum membro dos Arnoso da casa ilustre de Pindela, palpito que o conde de Arnoso, Bernardo Pindela, amigo de Eça e do grupo dos Vencidos da Vida, que serviu nos reinados de Dom Luís e Dom Carlos.
E por entre amoricos vários, viagens frequentes e arroubos místicos que o levaram ao Seminário, requerendo ordens aos deuses em 1850-1852… e tudo quase em simultâneo com um bailarico no Porto em “Anos de Prosa” escreve assim sobre a mulher fatal: “Num baile foi que a vi pela primeira vez (…) Era tudo majestade, tudo estatuária naquela criança.” Definitivamente apaixonado.
Na vasta obra literária de Camilo, existem os mais diversos géneros literários, desde a atividade jornalística que exerceu sempre até aos sermões e polémicas, da colaboração em revistas como a “Nova Alvorada” e traduções e parcerias como a “História da Filosofia”, de Jaime Balmes.
A sua escrita diária ter-se-á pautado por 5/6 páginas escritas à mão e por dia ao longo dos seus 65 anos, escrevendo centenas de obras, dia e noite, na escrivaninha em S. Miguel de Ceide, andarilhando pelos arredores para alargar a pleura e em que a cidade invicta é o centro do universo camiliano, mas também Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Braga e Bom Jesus, Guimarães, Vizela, Taipas, Landim, Viana do Castelo, não dispensando um jogo de cartas em tabernas de Ceide, ir até à feira de Vila Nova ou, preferencialmente ao mosteiro de Landim, onde tinha um quarto permanente cedido pelo seu amigo António Vicente Sequeira Leal Sampaio da Nóvoa, proprietário do mosteiro de Landim, afugentando as crianças no percurso pela sua indumentária e cartola… “Eu estou morando às abas da serra de Córdova, entre um souto e uma carvalheira. Sei todos os dias o preço do milho e do feijão fradinho. Tenho horas muito tristes e outras muito resignadas. A felicidade é que eu não encontrei aqui nem em parte alguma”, in “Carta a Castilho”.
Depois, depois… é o que se segue e conhece na Casa de Ceide desde o inverno de 1863/64 e à volta destas terras, “o bom coração de Portugal”, in “A Brasileira de Prazins”, o que o homem e o escritor puderam “ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer, os costumes, o viver por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila”, in “Novelas do Minho”, desde O senhor do Paço de Ninães, com Pouve à ilharga e O cego de Landim, a sul, entre espinhos e flores e abençoadas lágrimas, muito depois de o Anátema e mesmo das “Memórias do Cárcere”, não tendo sido condenado, pelas revelações que faz, procurando a felicidade, ele que é um esqueleto mas um homem de brios, com coração cabeça e estômago, apesar de não ser bom garfo. Os mistérios de Lisboa sempre o fascinaram e logo que pode vai para Fafe onde está o amigo Vieira de Castro que morre no desterro em Angola tal como outro seu amigo, o temido José do Telhado.
Claro que sempre lhe interessou “O que fazem mulheres” e que seguiu muito de perto desde a Carlota Ângela que escreve em Viana do Castelo onde foi chefe de redação do “Aurora do Lima”, à Filha e Neta do Arcediago, às 3 Irmãs, à Filha do Doutor Negro e muitas outras como Maria Moisés, Teresa ou Mariana no “Amor de Perdição” que escreve em 15 dias na cadeia da Relação do Porto, no Retrato de Ricardina, a Sereia, a Enjeitada, A infanta capelista, Maria da Fonte, a Mulher Fatal, A doida do Candal, A bruxa do monte Córdova, A caveira da Mártir, e o extraordinário romance “A Brasileira de Prazins”, um lugarejo na freguesia de Avidos, em Famalicão, apesar de se espraiar pelas terras de Calvos, em Póvoa de Lanhoso e terras de Basto, a par de outros grandes romances passionais ou de brasileiros de torna-viagem para além de “A Corja”, “Eusébio Macário”, “A Queda de um Anjo” e muitos mais.
Cansado de peregrinar e de novo mergulhado nas suas angústias e tormentos, Camilo recolhia-se depois na sua escrivaninha, situada no segundo andar da casa rodeada de pinhais gementes onde inclinava o peito crivado de dores para à custa do seu drama e da tragédia alheia ganhar, escrevendo tressuando sangue, o pão de uma família, in “No Bom Jesus do Monte”, entregando-se aí a um processo febril de criação omnímoda de que nos legou sentido testemunho no prefácio das Noites de insónia, deixando ainda todo um conjunto de obras projetadas mas não publicadas como “Os miseráveis de Cá”, talvez em eco com o grande escritor francês Victor Hugo, As amantes dos reis de Portugal, O Gonçalinho de Carude, (romance realista), para além de investigações genealógicas, traduções como O génio do cristianismo de Chateaubriand ou A formosa Lusitana de Lady Jackson e azáfama de leilões de livros e bibliotecas a que se dedicava e era perito nessas andanças e divagações da fidalgaria.
Aqui viveu grande parte da sua existência com a sua mulher fatal até ao fim e escreveu a maior parte da sua obra prodigiosa em quantidade e elevada qualidade literária, verdadeiro mestre criador da língua e visitado por amigos, mantendo uma correspondência febril sem fim com amigos, editores e personalidades e onde melhor que nos livros rechinam aqui os seus estados de alma e suas infindáveis variações, os seus risos e sarcasmos a par da instabilidade e tristezas e alegrias raras, sob a sombra benfazeja e tranquila da acácia do Jorge, aqui recebendo António Feliciano de Castilho, Tomás Ribeiro e muitos outros, aqui teve de vender grande parte da sua rica biblioteca, aqui perdeu filhos e neta, enfim, chorando copiosamente… “A criancinha tinha-me dado uma vida e uma alegria de empréstimo. O vazio que sinto aos 58 anos não há, em toda a natureza, uma sensação real ou quimérica que a encha. A morte da minha neta dessangrou-me todas as lágrimas.”, in “Carta a Alberto Pimentel”.
Em 1885 é agraciado com o título de Visconde de Correia Botelho e a 9 de março de 1888, ano do nascimento de Fernando Pessoa, casa finalmente com a mulher fatal da sua vida Ana Plácido, após repetidas insistências de seu amigo padre Sena Freitas com arruamento em Braga e que manda os parabéns a Camilo desde o Brasil onde missiona, autora também de Luz coada por ferros, sua parceira nas lides literárias, na sorte e no infortúnio pois que testemunharam em vida a morte da nora, filhos e neta, desgraça só igual à dor de seu admirador Teófilo Braga pela morte de seus 2 filhos e a quem envia pungente soneto que intitula como “A Maior Dor Humana”.
Ainda estará possivelmente em aberto a investigação sobre o quanto e até onde e em que obras ou domínios terá esta mulher forte ajudado a suprir a mãe que lhe faltou cedo, as ideias para a sua vastíssima produção e enredos romanescos e a sua participação mesmo de acompanhamento de outros trabalhos à volta dos livros e editores, das lides domésticas e dos filhos, da correspondência abundante que de Ceide saía e lá chegava, enfim, da permanente função de esposa, mulher e cuidadora que o seu marido e ele, sim, como homem fatal, a arrebatou de Pinheiro Alves, foi julgada e presa pelo adultério e o acompanhou até ao fim, depois de sepultado no cemitério da Lapa, no Porto, no jazigo de Freitas Fortuna, seu amigo e irmão, no dizer do camilianista Coutinho Lanhoso. Vencido pela doença e invalidez, Camilo desiste de qualquer atividade e a 21 de maio de 1890, dez dias antes do suicídio, escreve: “Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste País durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego.”
Mas não está só ali. Bem perto estão outros portugueses ilustres como Ramalho Ortigão, amigo e parceiro de aventuras literárias com Eça de Queirós, vizinho da Póvoa de Varzim, Soares de Passos, Silva Porto, enfim, que as lajes lhes sejam mais leves que pesadas, pois parece-me mesmo que ele pagou bem caro nesta vida por tudo e mais alguma coisa, como bem testemunha o investigador José Manuel de Oliveira em êxito editorial recente e de sucesso mesmo entre os camilianistas na sua quase monumental obra de “Vivências de Camilo Castelo Branco a partir da sua correspondência”, afigurando-se-me que a partir de agora se fixa um antes e um depois em tudo quanto se refira ao estudo de qualquer área de abordagem ao escritor de Ceide, tão acompanhado, investigado e estudado é ele no seu peregrinar terrestre que bem depressa se constituirá “vade mecum” imprescindível de estudo e certificação para qualquer trabalho inovador no vasto “terroir” da empolgante obra camiliana e sobre o qual o não menos famoso reitor de Salamanca, Dom Miguel de Unamuno, escreveu que Camilo era indispensável para conhecer a alma portuguesa, classificando o “Amor de Perdição” como o maior romance escrito da Península Ibérica.
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