Podíamos fazer do dia 01 de setembro o “Dia do Lembramento”.
Ocorreu-me quando seguia na autoestrada, no dia 01 de setembro último, precisamente. De volta à rotina. Era uma segunda-feira, ainda por cima. E estava o céu nublado: ainda por cima! Pelo menos não chovia… Trazia a pele tisnada e as pupilas dilatadas desse interregno divino, lá onde águas diáfanas se misturam com areias cristalinas. O corpo inteiriço tomado «do sal, do sol, do sul» de que falava O’Neill. E eu ali.
Rádio desligado, para não me deixar contaminar pela azáfama que estava já à espreita, e a todo o momento ia prevalecer, ela sabia isso – na sua certeza imperial. E enquanto ia contando as barreiras das bermas, as linhas divisórias, todos aqueles sinais familiares de um percurso afinal imutável, dei-me conta: mais do que o primeiro dia do ano, o regresso de férias é que funciona verdadeiramente como o início do ano. Sim, eu sei: é em janeiro que se fazem promessas. O ginásio. A dieta. As metas de leitura. As séries que se querem “tombar”.
Sei bem porquê. Há um efeito de fastio. Dezembro é um festival de quebra-rotinas. Então nós, acabadinhos de sair de um rodízio de patuscadas, reencontros sucessivos, excessos pantagruélicos, entrado janeiro no seu rigor marcial damo-nos ao recentramento. É que o espírito pode até andar em bolandas, mas o corpo, esse, pede descanso. Porque no Natal não se recarregam baterias, gastam-se até à exaustão. Não falta quem veja com certo alívio o fim da quadra, numa variante pessoalíssima do “enfim livres”: livres para tornar à sensaboria onde reinamos imunes a estranhos.
Nem o clima ajuda. O frio de janeiro é assim a modos que igual ao frio de dezembro. Só dá vontade de cristalizar numa modorra autossuficiente, avessa a interferências de qualquer espécie.
Coisa diferente, setembro. Em setembro ainda estamos no calor, ainda as tardes estendem o seu manto tépido pelos frontispícios da noite escura. Tardes de melancolia em que ressacamos da maré alta do ano: boas para balanços e resgastes de memória; boas para pensar nas vicissitudes da vida.
Oh, criaturas vãs! Devíamos ter ao menos, já não digo uma vez na vida, mas uma vez no ano, uma vez que fosse!, a oportunidade de legalmente escapulir destas amarras e inibições em que nos enredamos todos. Era nisso que pensava quando galgava quilómetros. Outra vez aqui. Mais um ano. O que fizeste tu neste ano que passou, de todas as coisas que querias ter feito e andas há anos para fazer?
Fosse então ao dia primeiro de setembro. Aquele amor frustrado? Aquela palavra que faltou no momento ansiado e para ali ficou, no correr dos anos, pairando sobre o ânimo, como um agravo miudinho? Um desconsolo nunca ter dito o que nos rói a alma. Mesmo que para nada: mesmo que saibamos, por muito que custe, que o desfecho inevitável é aquele que tantas vezes lapidamos na imaginação. Um não redondo. Uma gargalhada de escárnio. Um desconforto, um esgar de ironia? E que fosse, pois então!
Ou então não…
E que dizer daquele perdão engasgado que nos tolhe os gestos, nos apanha em falso por onde quer que vamos? E tudo porque nunca saiu da cena hipotética em que nos viciamos de especular. E que dizer daquele ‘olá’ que já perdeu a validade, e que não sabemos muito bem como fazer para retomar sem ao menos cair no ridículo.
– Olá…
Inventar um pretexto, uma efeméride, uma justificativa. «Viste o terramoto na Turquia? Que a piedade de Deus seja infinita, quantos mortos por debaixo dos escombros! Então lembrei-me de nós, a sondar se estarias bem, não fosse acontecer aqui…» Quando o propósito daquele ‘olá’ é só gritar a partir das entranhas que não aguentas mais a distância, o mutismo, o desconhecimento. Que te sentes a definhar por dentro, um poucochinho de cada vez.
Para isso serviria o 01 de setembro. O dia em que se dispensam conveniências e ficamos a contas somente com a própria vontade. Nós, portugueses, somos bons em sentimentalismos, mas fracos a expressar emoções: um bando de sem-jeitos, e depois não admira a melancolia, o fado, a saudade. Enfiamos para dentro, sempre mais para dentro. Explodimos às vezes; quase sempre implodimos, numa miscelânea de descrença e conformismo.
Façam-me o favor. Um pouco de ousadia, e se não fosse pedir muito – num dia do ano ao menos? Peço apenas o rasgo próprio de quem soubesse que o mundo haveria de acabar no dia 02 de setembro. Pensando nisso, quem poderia levar a mal o gesto ousado se ao dia seguinte estivesse para acabar o mundo?
Ninguém, claro. Por essas alturas estaríamos todos concentrados em fruir da melhor forma possível as últimas horas de existência…
[eu provavelmente metia-me até ao Carvoeiro, ando há que anos para encontrar por lá uma criança que se me perdeu no escaninho da memória]
Sim, o mundo não vai acabar no dia 02 de setembro. Não aconteceu este ano e não se espera que venha a acontecer no nosso tempo de vida. Por isso mesmo, falo do lembramento: porque a salvaguarda de quem ousa concretizar a aproximação ao outro seria o esquecimento garantido, caso o outro não estivesse para ali virado.
Simples, simples. Um crime sem castigo. Uma excepcionalidade do eixo espaço-tempo onde não se aplicam as regras da física. Uma licença para abordar, por extemporânea que pudesse parecer (os franceses têm uma expressão muito cómica, que junta abordage e sauvage…).
Precisamos de mais sauvardages, que é para ver se ao menos nos permitimos viver por inteiro de vez em quando.
Explico-me: a regra básica é que no dia do lembramento – um pouco como no Carnaval! – ninguém leva a mal. Se a resposta for aquela que receávamos, ninguém se estranha, ninguém tira desforços. Por descabidos: no dia 01 de setembro pelo menos. Nesse dia não há direito a capitais de queixa, todos devem respeitar a regra da excepcionalidade. Para cada lembrança há direito a um esquecimento, e assim ficamos todos em casa.
No dia do lembramento apenas e tão-somente existirá a vontade de baixar a guarda e apresentar-se sem reservas mentais. Quanto ao outro: quer, quer; não quer, segue a marinha como estava ao dia 31 de agosto. E apaga-se a memória do sucedido no famigerado dia 01 de setembro.
A não ser…
Quem sabe? Se um país é um somatório de indivíduos, talvez chegássemos a 02 de setembro um pouco mais bem realizados do que o habitual.
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