“Isto é horrível, Zé Fernandes…”

Eça de Queirós contactou episodicamente em Vila Nova de Famalicão com Camilo Castelo Branco.

Comentários

6 min de leitura

Claro que é discutível o que se escreve e diz sobre tudo, quando se discorre sobre a vida, a morte e derivados, como o lugar de nascer, morrer e ser deslocado/removido, quer queiras quer não, para lugar diferente daquele onde nascemos ou morremos.

Refiro-me, claro, à recente trasladação do “génio da graça e da beleza”, na sequência de outra anterior desde Lisboa para Baião, Eça de Queirós, que morreu em Paris e nasceu aqui ao lado de José Régio, na Póvoa de Varzim, em 1845.

Eça contactou episodicamente em Vila Nova de Famalicão com Camilo – que nasceu em Lisboa, em 1825, há precisamente 200 anos –, mas preferia a Casa de Pindela e seu amigo Bernardo, esse mesmo secretário do rei Dom Carlos, que está de há anos a esta parte em frente à Biblioteca de Camilo Castelo Branco, na cidade, mesmo encostadinho a Bernardino Machado, àquele que quis ser famalicense desde que abriu os olhos no Brasil e repousar na sua terra, Vila Nova de Famalicão, depois de ter sido por duas vezes Presidente da República de Portugal.

- Publicidade -

Não parece ter deixado vontades de ser aqui ou ali ou de fazer testamento até e, apesar do que deixou em “A Cidade e as Serras”, dos Campos Elísios em Paris até Tormes, pasme-se!…

E desde aí ter os desabafos das terras por onde se deixou ficar, não longe das terras de Aregos e rio Douro, a verdade é que nunca a Póvoa de Varzim litigou sobre a possibilidade de retornar à terra que o viu nascer e vejo agora mesmo que até Baião ficou deslumbrada com a ida da sua referência cultural maior para o Panteão Nacional, leia-se, necrotério, mausoléu, casa dos mortos, depósito mortuário… para não dizer pior, pelo respeito que me inspiram também todos os seus ocupantes, bem pobres por certo para precisarem de sepultura oferecida e mantida pelo orçamento do Estado. Vaidades humanas, claro… e só! E, se calhar, assim é por todas as grandes cidades do mundo.

É semelhante o destino destas duas pequenas cidades hoje: uma não o requisita nem reclama porque já tem nomes dispersos pela cidade e outra porque nunca se terá apercebido do génio e grandeza daquele que, viajado pelo mundo, concordou em sossegar por ali, naquela bela encosta de Santa Cruz do Douro… aqui que a importância do mar só existe porque há muita gente que gosta de se aproximar dele, apesar de o luminoso Douro servir de cordão dourado para conter e iluminar aquela terra.

Todos sabemos como Camilo resolveu o problema, por amores e muitos desvarios, e depois daquele imortal soneto sobre os “110 amigos ou talvez mais…“, que ele escreveu de uma penada e não tenho dúvida de que eram às centenas, apesar de, e bem perto, houvesse quem não se importava de lhe chegar a roupa ao pelo, que lá brigão era ele, sempre picado também pelo génio e pelas bexigas, como se lhe referia o grande camilianista e escritor duriense, João de Araújo Correia, que tive a honra de acompanhar pelos anos da década de 1980 a Ceide, tal como, mais tarde, o grande e genial Alberto Moravia, acompanhado de uma bela “ragazza” inspiradora e, apesar do frio e neve naquele dia, de coxa ao léu e grande casaco por cima!…

Não gostei da solução, mas poderá ter sido decisiva a reaparição da família que os parlamentares peralvilhos do que gostam é de alvitrar mesmo que não passem de eternos aprendizes ou alunos repetentes da “arte de bem cavalgar toda a sela”, brandindo dicções inusitadas para as galerias e a posteridade e/ou sonhar até em ir diretamente de casaca e medalhas do Parlamento para o Panteão, que, certamente, honraria maior ou ideal de vida não haverá, para quem passou a vida sentado, de manjedoura perto, ouvindo, limpando unhas e falando sempre para não enferrujar as fauces nem adormecer!…

Se eu fosse poveiro, e foi aqui que vi o grande mar pela primeira vez e não pela televisão, não deixaria de sair à liça nesta contenda, mas não sou e, em Paris, que o lembra, enquanto houver afeição às letras que o recomendem, mas não compreendo nem aceito também a passividade, o conformismo e o fatalismo de Baião, logo Baião, bela terra do meu amigo e lutador José Luís Carneiro, e homem de brios, recordando Camilo e Eça, ele  a quem o grande Harold Bloom, meu consultor e homem de referência nas letras, considerava um dos 26 velhos escritores da civilização e entre a literatura portuguesa e inglesa, e  que não havia melhor nesta vida ou outra que contemplar “o rio que corre pela minha aldeia…” – assim o proclamava o grande Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”, no poema XX “naquela noite de 8 de março de 1914,” e que diz assim…

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal,
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”

Por tudo isto, nada mais a dizer que palavras leva-as o vento e, para mim, está quase tudo dito.

Eça chega ao Panteão, que não aos Jerónimos, cofia o bigode, depõe a luneta e desabafa simplesmente após os primeiros momentos: “Isto é horrível!”… depois de, pouco antes, ter proclamado Jacinto – “Acredita, não há senão a cidade, Zé Fernandes, não há senão a cidade!…”

Bem. Em que ficamos, Eça?!…Em Paris e Lisboa, e Póvoa de Varzim ou Baião ou, afinal, no Panteão ou Jerónimos?!… Não percebo nada disto, mas alvitro: o Camilo que nasceu em Lisboa, 20 anos antes de ti, está na Lapa, no Porto, em jazigo de seu amigo e “irmão” Freitas Fortuna e tu, que nunca te arrumaste literariamente bem na sua escola, rumaste da Póvoa, arredores do Porto, onde ele gostava de nomadizar para renovar os ares da pleura e aliviar a tola dos concertos monocórdicos de flauta do filho Jorge, meio empoleirado na acácia, para Lisboa.

Não sabemos se quererias ou não mas, pelo sim e pelo não, penso que não te desagradaria a capital do velho império, tu que foste seu embaixador em diversas partes do mundo, homem atento e cosmopolita, sempre com um pé no Chiado, com o grande Antero nas Conferências do Casino e nos Vencidos da Vida e em Pindela/Famalicão, para dar à treta com os teus amigos e o anfitrião Bernardo, conde de Arnoso, esse mesmo que mandava servir aquela perdiz de escabeche e fatias de melão de casca de carvalho e bem acompanhado por aquele capitoso verdasco, alvarinho ou não, único no mundo e que tanto apreciavas debaixo daquelas latadas minhotas, se bem que eu preferia revisitar-te no mosteiro dos Jerónimos!… Malhas que o império tece.

 

____________________

Os artigos de opinião publicados no NOTÍCIAS DE FAMALICÃO são de exclusiva responsabilidade dos seus autores e não refletem necessariamente a opinião do jornal.

Comentários

Notícia anterior

A propina: o bicho papão do ensino superior

Notícia seguinte

Chega-Famalicão visita empresa do setor alimentar

- Publicidade -
O conteúdo de Notícias de Famalicão está protegido.