A verdade é tudo quando somos seres em formação. Os nossos pais são a verdade e o mundo é o que eles nos dizem e nos mostram. Até sermos atropelados por sentimentos e pelas intempéries da vida, a verdade é tudo o que temos. Como água que sai da nascente, somos verdade pura e indomável, sem barreiras.
À medida que o Ser se forma e que conhecemos as margens da vida, somos atingidos por seixos e poluídos por sentimentos que não sabemos filtrar. Esta água perde força, por vezes estagna e, quando fica parada demasiado tempo, eutrofiza-se pelos excessos acumulados. A verdade, como a conhecíamos, deixa de o ser e passa a ser dominada pela desilusão de não sermos o que desejamos para nós e para os outros: pela falha em corresponder, em cumprir, em desconhecer que os erros são oportunidades para melhorar e para colocar a salvo tudo o que ali julgávamos perder. Este rio que corre em nós, chamado verdade, perde velocidade a cada desilusão.
Quando deixamos de viver em verdade, é como se colocássemos um dique dentro de nós próprios, pedra sobre pedra. Escondemos dos outros o que nós mesmos não queremos ver. Deixar de viver em verdade é desconectarmo-nos desta corrente interna, é deixar de sentir o pulsar no que nos faz vivos. A água cristalina dá lugar às lágrimas da desilusão e da descrença. E são tantos os diques que erguemos internamente…
Até que um dia, cansados de navegar entre os montes e vales da vida, entre as margens ora largas ora estreitas, este rio repara que nada o pára. Ele é uma força da natureza, uma força viva dentro de nós. Pode ser abandonado, largado aos julgamentos, escondido na vergonha, pode até ser esquecido, mas não morre. Vive em nós.
As Tempestades
Entre ventos e chuvas, a vida vai-nos trazendo as suas tempestades. Algumas sazonais, outras inesperadas. E a cada uma, a água deste rio chamado verdade, primeiro levanta a terra que reside no fundo, tornando tudo turvo e difícil de identificar e perceber. É só depois, com o tempo que cada crise precisa, deixar a água mais límpida do que nunca. É de cada vez que voltamos a ver o fundo que a vida nos relembra a nossa verdade. É quando a água volta ao seu estado mais cristalino que recordamos o quanto nos esquecemos do que nos compõe, da vida que trazemos dentro de nós.
Há quem escolha não olhar para o rio que navega dentro de si e se foque apenas na viagem, no percurso e nas condições de navegação. Mas é essa água que corre que nos permite navegar. É ela que nos impulsiona a ir ou a largar.
Quando estas tempestades vêm com força, alteram a paisagem, as cores, o brilho e tudo o que a compõe, olhamos como se fosse a primeira vez para o rio. É nestes convites da vida que nos conectamos por momentos com a nossa verdade de novo. É nestes momentos que nos apercebemos do que fizemos e permitimos que fizessem com a nossa verdade. Por mais escolhas que façamos, boas e más, o rio continuará a correr. A menos que alguém o trave ou desvie, o seu caminho é único e está lá para nos conduzir à imensidão que somos.
Pelas rotas da vida, somos constantemente convidados a tomar escolhas e decisões que nos podem desviar, levar a mergulhar ou a saltar fora deste fluxo (interno). Mas nada será mais pleno do que seguir o curso do (nosso) rio. Verdade?
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