O que aconteceu nos últimos dias é demasiado grave para ser varrido para debaixo do tapete. A flotilha humanitária rumo a Gaza foi intercetada em águas internacionais pela Marinha israelita. Entre os detidos estão cidadãos portugueses — entre eles Mariana Mortágua. Não se trata de uma “detenção” normal: foi um rapto político. Foi um ataque contra uma missão que levava alimentos e medicamentos a um povo condenado à fome e ao genocídio.
E em vez da solidariedade óbvia, em Portugal aparece uma aberração: uma petição a pedir que Israel “não devolva Mariana Mortágua”. Não tem qualquer validade legal, é apenas uma arma de ódio. Uma ignomínia que serve apenas para humilhar e desumanizar. É um sintoma preocupante do estado a que a democracia portuguesa chegou, em que até a vida e a liberdade de uma deputada se transformam em objeto de chacota.
Por detrás desta campanha estão os de sempre: André Ventura e a extrema-direita, que não se limitam a discordar.
Fazem da desumanização um projeto político. Publicam mensagens de escárnio, festejam a prisão de uma portuguesa em Israel, alimentam o fascismo e normalizam o ódio. Mariana Mortágua é alvo há anos deste ataque insidioso: porque é mulher, porque é dirigente de esquerda, porque é filha de um resistente antifascista, porque é lésbica, porque é economista competente e porque não baixa a cabeça aos poderosos. O que mais incomoda Ventura e companhia é a coragem. E por isso querem destruí-la.
Mas a verdade resiste. O cônsul português que visitou Mariana relatou a sua mensagem: que esteve 48 horas sem água nem comida, que está numa cela com mais 12 pessoas, e que pediu manifestações e solidariedade. Mariana não se cala nem na prisão. E cabe ao Estado português agir em sua defesa. Não com palavras mornas, mas com exigência firme de libertação imediata.
Infelizmente, o Governo tem falhado. O caso Nuno Melo é o exemplo mais gritante. O ministro da Defesa desvalorizou a flotilha humanitária, alinhou o discurso com Israel e entrou em rutura com o próprio Executivo. Mais grave ainda: ficámos a saber que, em março, aviões norte-americanos com destino a Israel e carregados de material de guerra fizeram escala na Base das Lajes, nos Açores — sem que o povo português tivesse sido informado ou consultado. Um país que se diz soberano não pode ser cúmplice de massacres desta forma. Por tudo isto, Nuno Melo não tem condições para continuar no Governo. A sua permanência é uma vergonha nacional.
É fundamental também desfazer um equívoco: apoiar Mariana e denunciar os crimes de Israel não é defender o Hamas.
O dia 7 de outubro foi um horror absoluto, e os crimes cometidos pelo Hamas são inaceitáveis. Mas não se pode fingir que a violência começou nesse dia. O Hamas foi alimentado durante anos pelo próprio governo israelita, precisamente para enfraquecer forças palestinianas que defendiam negociações e a solução de dois Estados. Israel criou o inimigo conveniente que agora usa como desculpa.
E desde 7 de outubro Israel tem usado esse horror como pretexto para levar a cabo um genocídio em larga escala. Mais de 60 mil mortos, em grande parte mulheres e crianças. Hospitais arrasados, bairros inteiros apagados do mapa, famílias destruídas. Isto não é “defesa”. É extermínio.
A única posição ética possível é esta: condenar o Hamas, sim, mas também condenar com a mesma firmeza o genocídio israelita. Porque todas as vidas civis importam — e não haverá paz enquanto o povo palestiniano for tratado como descartável.
Hoje, Mariana Mortágua é alvo de ódio e humilhação. Mas ela representa a coragem que falta a tantos. Ela está onde sempre esteve: na linha da frente, onde é mais difícil estar. E é por isso que tentam calá-la.
Não o conseguirão.
Solidariedade plena com Mariana, com Sofia, com Miguel e com todos os ativistas sequestrados.
Vergonha para André Ventura e para todos os que festejam a prisão de compatriotas.
Vergonha para um Governo que se deixa arrastar para a cumplicidade.
Palestina livre. Mariana livre. Liberdade já.
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